O presidente está morto
Há uma distância infinita, insuperável, entre o jornalismo brasileiro e os tiros contra Trump
O velho bateu uma mão contra a outra com força. Entre ambas, dois, três estalinhos, que explodiram como uma pequena bomba àqueles ouvidos de criança. Nunca terei mãos como as do meu avô. Mãos de madeira, entalhadas, inquebráveis. Lembro-me ainda delas colocadas uma sobre a outra no caixão, as mãos de velho do meu avô.
Mas falo isso não pelas mãos do finado. Falo pelos estalinhos e os ouvidos de criança. Foi com tais ouvidos que a mídia brasileira percebeu os tiros disparados contra Donald Trump. Não: os supostos barulhos — que bem poderiam ser, não duvidem, alguns estalinhos de festa junina.
Vejam vocês: os supostos barulhos que pareciam ser tiros soaram muito longe daqui, e, dizem os bacharéis, o jornalismo precisa ser feito com a cautela de um gato bebendo leite. Já há, no mundo, muita notícia falsa — eis o motivo que fez os eruditíssimos jornalistas ignorarem o óbvio gritante, os próprios olhos ou, por outra, os próprios ouvidos.
E já que estamos nos barulhos distantes, lembrei-me agora de uma crônica de Nelson Rodrigues. Dizia ele que, pelo defeito da distância, um cachorro atropelado à nossa porta tem mais apelo emocional que a bomba de Hiroshima. O cachorro era nosso conhecido, vinha nos lamber os sapatos diariamente. Hiroshima fica muito longe, fala outra língua.
Eis o que eu queria dizer: há uma distância infinita, insuperável, entre o jornalismo brasileiro e os tiros contra Trump. Choca-nos mais o cachorro morto à porta que a quase morte do ex-presidente americano. E como não há aqui nenhum cachorro atropelado digno de nota para a mídia — nem atropelado, nem preso, nem morto ou esfaqueado —, restaram-nos os estalinhos na Pensilvânia. Poderiam ser a bomba de Nagasaki. Não ouviríamos nada.
Mas eu falava sobre defuntos. Alguém dirá que não temos um por coisa de centímetros. Há, no Brasil e nos Estados Unidos, quem lamente o fato. Mas, se desejam mesmo um defunto caindo do palanque, virem os ouvidos de criança para Washington. Ele está lá, na Casa Branca, devidamente engravatado. Falta-lhe apenas o caixão.
— Renan Rovaris é escritor, designer e colaborador do BSM.
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