O pogrom do Daguestão e o mito da resistência russa
Brás Oscar analisa as motivações políticas e culturais da perseguição a judeus no aeroporto de Makhatchkala: “Os atos de selvageria têm o objetivo claro de coagir Israel, de ‘mandar um recado’, bem ao modo de criminosos”
No domingo passado (29), o principal aeroporto do Daguestão, na Rússia, foi temporariamente fechado após ser tomado por cidadãos russos que formaram uma multidão com a intenção de linchar judeus.
A descrição do fato, caso não fosse num aeroporto, poderia ser confundida com a onda de violência anti-semita no sul da Rússia, entre os séculos XIX e XX, quando ocorreu o infame Pogrom de Kishinev, em 1903, com três dias de matanças, incêndios e vandalismo, que só foi parado após a organização de uma milícia judaica para autodefesa.
Desta vez, cidadãos russos queriam espancar e matar passageiros de um vôo vindo de Israel que desembarcavam em Makhatchkala, capital do Daguestão. Como não conseguiram aceder à pista, saíram às ruas literalmente caçando judeus, parando carros e exigindo documentos das pessoas para tentarem determinar se eram judias ou não. Coisa de fazer inveja a qualquer tropa da SS.
A primeira reação quando temos notícia desse tipo de barbárie é tentar encontrar um motivo. Nesse caso há duas camadas de motivação, uma política e uma cultural.
A motivação política obviamente está relacionada aos ataques do grupos terrorista Hamas a Israel e às implicações geopolíticas dessa tensão no Oriente Médio. O presidente russo Vladimir Putin até tentou manter ares de neutralidade em seu discurso para a mídia, mas as relações da Rússia com o Irã, principal financiador do terrorismo palestino, é antiga e solida.
Nesse contexto, Putin precisa se posicionar como um dos novos candidatos a líder diplomático internacional, posição que, juntamente com a China, pretende tomar dos EUA e da Europa. Não foi por menos que a China sugeriu que um possível acordo de paz entre Israel e Hamas deveria ser feito em solo russo, com Putin e Xi como intermediadores.
Putin obviamente quer uma política para o Oriente Médio que não aponte os crimes do Hamas e obrigue Israel a aceitar mais um ataque terrorista, engolir o choro e não revidar com toda a sua força. Um resultado assim preserva a importância política do Hamas na região e impede Israel de confrontar o Irã.
O Irã, por sua vez, precisa manter acesa as brasas do caos em Gaza, porque o Hamas tornou-se politicamente dependente do Irã. Sem o Hamas, o Irã perde o resto de importância política que possui na região, afinal, o terrorismo palestino que já foi apoiado e financiado direta ou indiretamente pela Arábia Saudita, Emirados Árabes e Catar, hoje é uma mancha que estes países tentam apagar em suas tentativas de se apresentarem para o mercado e a política internacional como muçulmanos moderados e alinhados a certos valores ocidentais como direitos civis e liberdade econômica.
Ninguém quer o Hamas, exceto o Irã. Ninguém quer o Irã, exceto a Rússia.
A selvageria que aconteceu em Makhatchkala tem o objetivo claro de coagir Israel, de “mandar um recado”, bem ao modo de criminosos. Inflar uma multidão e conduzi-la à violência é uma das principais habilidades do Grupo Wagner, que trabalha em operações militares para o governo russo e coleciona vários êxitos em táticas de infiltrar seus membros em movimentos políticos para criar agitação e quebradeira, como ocorreu na Geórgia, Ucrânia e Bielorrússia e foi recentemente denunciado pela Moldávia também.
O fator cultural diz respeito ao Daguestão, uma república que é parte da Federação Russa e cerca de 85% de seus quase 3 milhões de habitantes são muçulmanos.
Historicamente o Daguestão e outras regiões próximas, no Cáucaso russo, sempre foram proeminentes em perseguir e matar judeus. Não à toa foi a partir dos pogroms russos que o termo, derivado do verbo russo громи́ть (gromit – destruir), se tornou de uso internacional e passou a adquirir o sentido de perseguição contra judeus organizada por grupos de civis e toleradas ou apoiadas pelas autoridades locais.
Os pogroms do sul da Rússia entre 1881 e 1884 foram apoiados pela Okhrana, a polícia secreta do regime do Czar Nicolau III, e foram responsáveis pela fuga de quase 2 milhões de judeus para os Estados Unidos neste período.
Outra parte curiosa que esse evento nos faz lembrar é que a Rússia considera o Islã como religião tradicional nacional. Uma lei aprovada no parlamento em 1997 eleva o islamismo a esse status. Justo a Rússia – vendida por propagandistas de Putin como aquela lidera uma resistência à degradação de uma Europa que “um dia irá se islamizar” – já reconhece o Islã oficialmente há 26 anos.
– Brás Oscar é escritor, colunista e apresentador do BSM. Autor de O Mínimo sobre a Queda da Europa.
"Por apenas R$ 12/mês você acessa o conteúdo exclusivo do Brasil Sem Medo e financia o jornalismo sério, independente e alinhado com os seus valores. Torne-se membro assinante agora mesmo!"