REFORMA POLÍTICA

O parlamento irresponsável

Lucas Mafaldo · 29 de Fevereiro de 2020 às 15:47 ·

Entenda como parlamentares de baixíssima expressão política conseguem chantagear o executivo e por que eles permanecem no poder apesar da rejeição popular.

Durante o primeiro ano do governo Bolsonaro, a mídia e a oposição frequentemente criticaram o governo por ser "ruim de articulação política", isto é, pela sua dificuldade em formar uma base de apoio no legislativo.

Essa tensão entre o parlamento e o executivo, no entanto, está muito longe de ser uma novidade do atual governo. Em certo sentido, ela é a marca de todos os governos desde a década de 80, quando a chamada Nova República substituiu os governos militares.

Uma série de características torna o atual sistema política brasileiro muito peculiar. Embora o presidente concentre muito poder em suas mãos, ele precisa negociar frequentemente com o legislativo para continuar governando. Além da ameaça real e constante de impeachment, uma constituição federal inchadíssima força o governo a continuamente negociar emendas constitucionais para implementar projetos que foram prometidos durante as eleições. O executivo, em suma, tem uma margem de manobra muito curta diante do legislativo.

Além disso, a negociação com o legislativo é sempre muito difícil: além do parlamento ser composto por dezenas de partidos, pouquíssimos deles possuem uma ideologia, programa de governo ou mesmo hierarquia claras. Isso força todo presidente a entrar em negociações paralelas com diversos grupos com visões e interesses distintos.

Não é, portanto, fulano ou sicrano que é "fraco de articulação". Há algo nas próprias instituições brasileiras que torna essas articulações extremamente complexas e ineficientes. 

 

O labirinto das reformas políticas

Tocar nesse assunto nos leva a um assunto complicadíssimo: a eterna discussão sobre reforma política. Quase todo mundo concorda que há uma série de problemas no sistema político brasileiro. Quase ninguém concorda com o que deve ser feito para melhorá-lo.

O tema da reforma política é complicado por dois motivos: por um lado, ele é extremamente técnico (o que nos permite considerar inúmeras reformas diferentes, sem que nenhuma das opções se torne a preferida da maioria); por outro, ela precisa ser aprovada pelo legislativo, que não tem interesse em mudar o sistema atual (afinal, eles vão preferir manter o sistema que os elegeram).

Por isso mesmo, já fazem alguns anos que eu defendo a seguinte tese: precisamos concentrar nossos esforços em uma reforma simples e efetiva. Em vez de procurarmos uma solução perfeita que nunca sairá do papel, precisamos identificar o problema central do sistema atual e defender o modo mais simples possível de resolvê-lo.

Eis a segunda parte dessa tese: o problema maior do sistema atual é que temos um parlamento irresponsável, isto é, a nossa democracia não possui um mecanismo efetivo de pressionar os políticos do legislativo. E eis a terceira parte: precisamos caminhar em direção ao voto distrital para criar esse mecanismo.

 

O parlamento irresponsável

O leitor já deve ter percebido que o aumento das tensões entre executivo e legislativo sempre gera a discussão sobre a adoção do parlamentarismo no Brasil.

Na teoria, a ideia parece boa, afinal, o parlamentarismo foi adotado com sucesso em inúmeros países desenvolvidos. Eu mesmo sou um admirador do parlamentarismo inglês, o qual inspirou inúmeros governos transparentes e eficientes ao redor do mundo, como o canadense e o australiano. 

Na prática, os brasileiros percebem intuitivamente que isso não daria certo com o nosso parlamento atual -- e eles têm toda a razão. Falta ao nosso legislativo um ingrediente essencial para o sucesso do parlamentarismo: a conexão entre a população e o parlamento. O sistema atual brasileiro simplesmente não permite que a população exerça um poder de fiscalização efetivo sobre os deputados.

Em grande parte, isso se deve ao sistema eleitoral e ao sistema partidário. Os partidos possuem muito poder no momento de indicar candidatos, formar coligações e distribuir as verbas de campanha. Isso faz com que as opções dos eleitores diminuam antes mesmo das eleições começarem.

Além disso, as eleições para o legislativo usam regras especialmente complicadas: o sistema de coligações permite que "puxadores de votos" arrastem para dentro do parlamento políticos extremamente impopulares. Em nosso sistema, é perfeitamente possível que mesmo políticos rejeitados por 95% da população consigam dar um jeito de entrar na lista correta e voltar ao parlamento -- e, pior ainda, usar o poder do cargo para fugir da justiça.

Em outras palavras, o sistema eleitoral do legislativo não permite que o eleitor tenha um mecanismo simples e eficiente para punir os legisladores: o eleitor mal compreende como cada deputado foi eleito e, portanto, não possui um caminho claro para impedir que eles sejam reeleitos no futuro.

Com os chefes do executivo -- presidente, governadores e prefeitos -- ocorre exatamente o contrário: eles são eleitos pelo voto majoritário em dois turnos, logo, eles precisam passar pelo crivo da maioria da população antes de subir ao poder. Por isso mesmo, os olhos do povo estão sempre sobre o executivo: os eleitores sabem quem eles são, sabem o que eles prometeram e podem votar contra eles na próxima oportunidade.

Essa situação gera um desequilíbrio no momento das negociações entre executivo e o legislativo. O parlamento pode jogar muito mais duro, porque ele não está sob a mesma pressão da opinião pública. O exemplo mais claro disso está no fato de que mesmo um presidente tão popular quanto Bolsonaro está enfrentando dificuldades para negociar com um parlamento com pouquíssimas lideranças de expressão nacional. Isso ocorre porque os deputados não têm a mesma visibilidade do presidente e, portanto, podem tomar medidas impopulares sem sofrer tantas consequências negativas.

Nesse contexto, a adoção do parlamentarismo seria um enorme erro, pois estaríamos dando mais poder aos políticos que estão mais distantes da população. Antes de falarmos em parlamentarismo, a democracia brasileira precisa aproximar o povo do seu parlamento.

 

O voto distrital como mecanismo de pressão democrática

O diagnóstico anterior oferece a pista de um remédio simples que já poderia melhorar a qualidade das próximas eleições nacionais: a adoção do voto distrital para o legislativo.

No voto distrital, os estados seriam divididos em regiões menores e cada microrregião elegeria o seu próprio deputado. Além disso baixar os custos de campanha (pois elas ocorreriam em regiões menores), a adoção do voto distrital permitiria que os parlamentares passassem também pelo crivo de uma eleição majoritária. Os eleitores conheceriam mais de perto seus representantes e saberiam com quem reclamar caso estivessem insatisfeitos com o parlamento.

E, principalmente, caso um político se mostrasse um grande picareta depois de eleito, os eleitores poderiam se organizar mais facilmente para impedir que ele voltasse ao parlamento: bastaria votar contra ele nas eleições seguintes ao escolher algum dos seus oponentes principais.

O voto distrital, portanto, daria ao povo um mecanismo para pressionar o parlamento. Por isso mesmo, precisamos adotá-lo antes de começar a falar em parlamentarismo.

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