DIÁRIO DE UM CRONISTA

O leite supremacista do Bolsonaro

Paulo Briguet · 8 de Novembro de 2023 às 17:43 ·

É claro que o ex-presidente bebeu um copo de leite para fazer um gesto supremacista, e não para homenagear um dos segmentos mais importantes da economia do país

Uma das lembranças mais antigas e queridas que eu levava comigo nestes 53 anos de existência como emissor de carbono é a do copo de leite que minha mãe, a D. Aracy, me oferecia todas as noites, antes da hora de dormir. Nunca é tarde para aprender algo novo, mas devo aqui registrar meus agradecimentos ao jornalista Marcelo Lins, da Globonews, que no programa Estúdio i, exibido na última terça-feira (7), esclareceu que esse hábito de tomar leite é um gesto simbólico supremacista. Sinceramente, eu não estava consciente da natureza hedionda de meu hábito infantil, mas, diante do Tribunal da Grande Mídia, peço que seja levado em conta um elemento atenuante: o leite que eu consumia naquelas noites paulistanas não era puramente branco, mas um tanto amarronzado, pois Aracy costumava acrescentar-lhe uma colher de Nescau. Mais tarde, quando eu já estava crescidinho, minha mãe ordenava que eu cometesse outro crime: ir até a padaria do português, que ficava na Alameda Eduardo Prado, para comprar um litro de leite B e quatro pãezinhos. (Espero que os pãezinhos, meio amorenados, não firam nenhum código de conduta identitária.)

Para reforçar o que disse sobre o leite, meu colega jornalista citou uma (“ou várias, se não estou enganado”) lives em que o ex-presidente Bolsonaro apareceu tomando um copo de leite mais branco que a ficha criminal do atual ocupante da Presidência, sendo este gesto simbólico uma clara (ops...) referência à tese racista-supremacista de que homens brancos digerem melhor o alimento oriundo das vacas do que homens não tão brancos assim.

Lamentavelmente, meu companheiro de ofício estava enganado. Bolsonaro bebeu leite ao vivo apenas uma vez, justamente na quinta-feira, 28 de maio de 2020, que precedia a comemoração do Dia Mundial do Leite, comemorado em 1º de junho, e o fez a pedido da então ministra Tereza Cristina, hoje senadora.

Contudo, resta evidente que Bolsonaro não estava nem um pouco preocupado com a importância do leite para a economia do país. Afinal, o Brasil atingiu a marca de 80 bilhões de litros de leite por ano, tornando-se o terceiro maior produtor do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da Índia – mas isso não tem a menor relevância. Também ninguém liga para o fato de que hoje um milhão de propriedades rurais no país produzem leite, em 98% dos municípios brasileiros. O leite é o sétimo produto no ranking de alimentos do país, mas quem está preocupado com isso, não é mesmo?

E se vocês, meus sete pacientes leitores, quiserem mais algumas informações inúteis, eis aqui. A produção do famigerado alimento supremacista branco hoje garante emprego a 4 milhões de brasileiros, isso sem contar a cadeia produtiva de laticínios, que certamente paga o leite das crianças, ops, põe a comida na mesa de outros milhões de famílias. O valor bruto da produção primária no Brasil atingiu no ano passado R$ 80 bilhões e o faturamento líquido dos derivados de leite ultrapassa R$ 70,9 bilhões. Em duas décadas, de 1997 a 2017, houve um aumento de 80% na produção de leite, ainda que com uma considerável redução no número de vacas ordenhadas. Isso significa que o setor tem alcançado maior produtividade por cabeça, embora estejamos distantes dos campeões mundiais de produtividade nesse segmento: EUA e Israel. (EUA e Israel? Olha aí eu me comprometendo de novo...)

Mas, afinal de contas, que importância tem isso tudo? O importante é bater no Bolsonaro. Hoje, no entanto, acho que Estúdio i vai mudar de assunto: um vereador carioca teve o mesmo destino trágico de Marielle e foi assassinado no Rio.

Ah, não, péra. O vereador era do PL. Pode falar mais um pouco do leite, Lins.

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM. Autor de Autor de Autor dos livros Nossa Senhora dos Ateus e O Mínimo sobre Distopias.

 


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