ESTADOS UNIDOS

Morte de juíza abre espaço para a mudança na Suprema Corte

Braulia Ribeiro · 20 de Setembro de 2020 às 16:10 ·

Liberal à moda antiga, Ruth Bader Ginsburg era uma referência para a esquerda americana. Trump tem 45 dias para indicar um sucessor — que deve ser um juiz conservador

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Morte de juíza abre espaço para a mudança na Suprema Corte

 

Liberal à moda antiga, Ruth Bader Ginsburg era uma referência para a esquerda americana. Trump tem 45 dias para indicar um sucessor — que deve ser um juiz conservador

 

Eu iria usar um adjetivo no título para qualificar a juíza da Suprema Corte Ruth Bader Ginsburg. Juíza feminista, ou abortista, seriam termos aceitos pela massa conservadora e explicariam já no título o alvoroço que a morte desta senhora de 87 anos de idade, na noite da sexta-feira, 18 de setembro, causou em Washington D.C. e no país inteiro. Mas eu estaria cometendo uma injustiça contra a mulher, jurista brilhante que desempenhou um papel muito importante no direcionamento jurídico da sociedade americana nas ultimas quatro décadas, duas das quais ela passou na Suprema Corte.

 

Então, peço ao leitor que junto comigo evite julgamentos apressados e rótulos para tentar entender a importância desta personagem. Como os liberais da velha guarda americana, a “notória RBG”, como é conhecida a jurista, amava a América. Filha de imigrantes pobres, judeus, primeira geração por parte de pai, segunda por parte da mãe, ela diz no documentário feito pela rede de streaming Hulu que sua história de sucesso só seria possível na América. Nascida no Brooklyn em 1933, RBG estudou na Universidade de Cornell, que na época aceitava pouquíssimas mulheres. Mais tarde, já casada, convenceu seu marido e seus pais de que seria capaz de fazer Direito em Harvard. O curso de Direito aqui nos EUA é pós-graduação, e a seleção das escolas de lei (como são chamadas) é rigorosíssima. O aluno tem que passar por um “vestibular” específico, e para chegar nos cursos de primeiro nível precisa de uma pontuação quase que  perfeita. Ruth conheceu seu marido, Martin Ginsburg, em Cornell e os dois foram juntos para Harvard, mas ela ficou  um ano à frente de Martin. Ruth tinha já uma filha de 14 meses quando começou o curso, mesmo assim foi parar na edição do “Law Review”, o prestigiado periódico da universidade, do qual só participam os melhores alunos. Quando Martin se formou, recebeu uma oferta de emprego em Nova York, e o casal então se mudou para lá e Ruth foi forçada a transferir seu JD (Juris Doctor) para Columbia.

 

Já no inicio de sua carreira, Ruth sentiu que era sua missão trabalhar pela igualdade civil da mulher. Apesar da carreira acadêmica brilhante, ela teve dificuldades para encontrar trabalho. Na década de 60, ainda havia uma resistência enorme da sociedade para aceitar mulheres como advogadas, e as firmas se recusaram a contratá-la. Sua opção foi trabalhar como assessora de um juiz por dois anos, antes de conseguir um emprego numa firma que pagava bem menos para ela do que pagaria a um homem.  O papel da “notória RBG” não era o de uma militante desvairada nem cega por uma ideologia embotada. Ela sentiu na pele o peso das pequenas restrições e discriminações legais ainda presentes na vida do país. As americanas devem a ela o fato de poder abrirem sozinhas uma conta bancária e comprar uma casa sem a assinatura obrigatória de um homem como fiador. Em 1978, Ruth arguiu diante da Suprema Corte  o caso Duren v. Missouri (1978) onde o réu, condenado por um júri 100% masculino, alegou que a falta de representação feminina no júri era inconstitucional. Até então, mulheres tinham a garantia de isenção quando chamadas para prestar serviço no júri, o que esvaziava os tribunais da presença feminina. Outro caso foi o Weinberger v. Wiesenfeld (1974) onde o requerente Stephen Wiesenfeld, tendo perdido sua esposa no parto de seu filho, requeria uma pensão do estado de Nova Jersey, para ser o guardião primário da criança, pensão que até então só era concedida às viúvas.  Apesar de estar defendendo o direito de um homem, o caso serviu como um modelo paradigmático contra a discriminação por sexo[1] na concessão de auxílios governamentais. 

 

Acumulando cinco vitórias e uma derrota apenas em arguições diante da Suprema Corte, Ruth ajudou a pavimentar o terreno jurídico para que a igualdade civil se solidificasse. Acabou sendo nomeada para ser a segunda juíza do sexo feminino da história da Suprema Corte americana em 1993 pelo presidente Bill Clinton, para continuar seu trabalho em favor das mulheres.  Infelizmente, isso significava também para Ruth a defesa de Roe v. Wade (1973), a famigerada jurisprudência que liberou o aborto legal assim como outras pautas liberais.

 

Casada por 56 anos, RBG foi mãe, avó e bisavó, ou seja, uma liberal à moda antiga, que preferia viver de acordo com os costumes conservadores.  Segundo sua principal biógrafa, Jane Sherron De Hart, professora da USC St Bárbara, Ruth aprendeu de seus pais o que era ser um bom judeu e um bom americano, o que significava que  seu amor pela justiça e pela lei era também referenciado por sua religião, mas de uma maneira independente.[2] Ela não era uma religiosa no sentido tradicional, e se rebelou desde cedo contra a tradição judaica que excluía mulheres dos rituais mais importantes. Mas prezava os valores claros da justiça hebraica advindos do livro sagrado.  Ruth tinha, por incrível que nos pareça a nós, cidadãos de um país lacerado pelos ódios políticos, uma longa amizade com Antonin Scalia, o grande jurista católico, venerado pelos conservadores.

 

Não confundam a “notória RBG” com os ativistas chinfrim que temos no STF. Ruth era uma jurista de peso, que ancorava suas decisões no princípio stare decisis, que compelia suas  análises e juízos à  consideração obrigatória dos precedentes jurídicos. “A solidez racional da argumentação é importante, mas não devemos abandonar precedentes apenas porque uma solução diferente nos parece mais racional”[3], afirmou ela. Ruth não era de maneira nenhuma uma ativista legal desvairada sem consideração pelo texto constitucional ou pela tradição judicial. Ela cria nas instituições e achava que as mudanças sociais tinham que se dar de maneira paulatina, e não radical. Se fizesse parte do STF de hoje, seria tida como uma “reacionária.” Apesar disso, o seu afastamento da corte era aguardado ansiosamente pelos conservadores. Para os republicanos, a morte da juíza algumas semanas antes das novas eleições é uma oportunidade de ouro para tentar emplacar um substituto que preze a constituição e impedir que os democratas “psolistas” povoem a Corte com ativistas dispostos a desmontar o coração legal da sociedade. Os democratas vão perder o sono, enquanto os republicanos vão andar sonhando acordados pelos próximos dias.  Preparem-se para longos debates e muito jogo sujo. O senador republicano, líder da casa, Mitch McConnell, que não permitiu que Obama em  2016 nomeasse o substituto de Antonin Scalia, morto em fevereiro de 2016, já disse que vai liberar Trump para a nomeação. Obama estava a nove meses do final do mandato.  Trump tem apenas 45 dias para fazer a mágica da substituição de RBG.

 

 

 

[1] https://www.oyez.org/justices/ruth_bader_ginsburg

[2] https://www.washingtonpost.com/religion/2020/09/18/ruth-bader-ginsburg-was-passionate-about-judaisms-concern-justice/

[3] Yip, Elijah, and Eric K. Yamamoto. "Justice Ruth Bader Ginsburg's Jurisprudence of Process and Procedure." U. Haw. L. Rev. 20 (1998): 647.

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