DIÁRIO DE UM CRONISTA

Eu não sou digno de que entreis em minha morada

Paulo Briguet · 18 de Setembro de 2023 às 16:22 ·

O episódio do centurião de Cafarnaum e a centralidade do perdão na vida cristã

O Evangelho da missa de hoje contou a história do centurião romano de Cafarnaum. Entre todos os personagens menores da Bíblia, ele é um dos meus preferidos. Frequentemente eu me flagro pensando naquele militar, em seu gesto, em suas palavras.

 S. Mateus narra:

“Entrou Jesus em Cafarnaum. Um centurião veio a ele e lhe fez esta súplica: Senhor, meu servo está em casa, de cama, paralítico, e sofre muito. Disse-lhe Jesus: Eu irei e o curarei. Respondeu o centurião: Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha casa. Dizei uma só palavra e meu servo será curado. Pois eu também sou um subordinado e tenho soldados às minhas ordens. Eu digo a um: Vai, e ele vai; a outro: Vem, e ele vem; e a meu servo: Faze isto, e ele o faz...

Ouvindo isto, cheio de admiração, disse Jesus aos presentes: Em verdade vos digo: não encontrei semelhante fé em ninguém de Israel.” (Mt 8, 5-10)

A mesma história – que foi lida na missa de hoje – é contada por S. Lucas, com alguns detalhes adicionais:

“Tendo Jesus concluído todos os seus discursos ao povo que o escutava, entrou em Cafarnaum. Havia lá um centurião que tinha um servo a quem muito estimava e que estava à morte. Tendo ouvido falar de Jesus, enviou-lhe alguns anciãos dos judeus, rogando-lhe que o viesse curar. Aproximando-se eles de Jesus, rogavam-lhe encarecidamente: Ele bem merece que lhe faças este favor, pois é amigo da nossa nação e foi ele mesmo quem nos edificou uma sinagoga.

Jesus então foi com eles. E já não estava longe da casa, quando o centurião lhe mandou dizer por amigos seus: Senhor, não te incomodes tanto assim, porque não sou digno de que entres em minha casa; por isso nem me achei digno de chegar-me a ti, mas dize somente uma palavra e o meu servo será curado. Pois também eu, simples subalterno, tenho soldados às minhas ordens; e digo a um: Vai ali! E ele vai; e a outro: Vem cá! E ele vem; e ao meu servo: Faze isto! E ele o faz.

Ouvindo estas palavras, Jesus ficou admirado. E, voltando-se para o povo que o ia seguindo, disse: Em verdade vos digo: nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé. Voltando para a casa do centurião os que haviam sido enviados, encontraram o servo curado.” (Lc 7, 1-10)

Quem seria esse homem que causou admiração no próprio Jesus? É importante lembrar que estamos em Cafarnaum, cidade em que o Filho do Homem morou por algum tempo. São Lucas acrescenta a informação de que o referido oficial era benquisto pela comunidade judaica local, por ter ajudado a construir a sinagoga. Era um membro da segunda casta (político-militar) que honrava a primeira casta (sacerdotal) e — dado importantíssimo — está em busca de um benefício não para si mesmo, mas para um simples criado, um membro da quarta casta (servil).

Em termos práticos, a morte de um servo não teria grandes consequências para o oficial romano. Como o próprio nome da patente diz, o centurião tinha sob seu comando um grupo de cem homens; todos poderiam servi-lo no lugar do que estava doente. Mas, a exemplo do pastor da parábola, que tinha 100 ovelhas e deixa para trás 99 só para encontrar a ovelha perdida, aquele homem tinha compaixão por seu servo em sofrimento.

Precisamos considerar que o exército romano, naquele momento histórico, era a própria imagem do inimigo. Não duvido que o centurião de Cafarnaum tenha ordenado e até praticado atos abomináveis durante operações de guerra, tanto em Israel como em outros lugares. O centurião, apesar de exercer um cargo de comando, era um militar que lutava junto com os soldados, a pé. Ele participava das operações corpo a corpo das tropas romanas. É virtualmente impossível que tenha feito isso sem derramar sangue.

Certamente não é por acaso que o Evangelho de ontem falava sobre o perdão – aquele que deve ser dado até “setenta vezes sete”, nas palavras de Jesus. O episódio do centurião em Cafarnaum, lido hoje, vem a reforçar a centralidade do perdão na vida cristã.

Quando o centurião vê Jesus, com absoluta certeza ele tinha em mente os seus pecados, sentia o peso de sua vida pregressa. Sua busca por perdão começara no auxílio aos judeus para a construção da sinagoga. Mas, quando o militar vê aquele Homem, sente que ali a misericórdia está presente de forma pessoal. Não é uma simples edificação, como a sua casa; não é apenas um lugar sagrado, como a sinagoga; é o próprio templo do Espírito de Deus. “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada...”

Tudo que o centurião pede a Jesus é uma palavra. Uma palavra que nem sequer precisava ser pronunciada. Basta-lhe um único pensamento de Deus, e tudo, absolutamente tudo irá bem. O servo deixará de sofrer; e ele próprio, deixará de sentir o peso de seus pecados. A cura do servo é o perdão do centurião; a salvação carnal do comandado é a salvação espiritual do comandante. Aqui, tanto o tempo quanto o espaço estão abolidos; esse Homem, que tem a posse simultânea de todos os momentos, não precisa percorrer nenhum espaço, não precisa esperar nenhum instante para conduzir esse pobre homem à vida eterna. “Mas dizei uma palavra e meu servo será salvo”.

Na missa católica, a oração do centurião, levemente modificada, é feita antes da Eucaristia, quando recebemos o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo. Nós somos como aquele militar: igualmente pecadores, mas também igualmente arrependidos. Nas operações de guerra desta vida, ferimos e matamos, causamos dor e destruição. Mas apenas uma palavra — um pensamento — de Deus é suficiente para purificar o nosso coração miserável, a nossa habitação de trevas, o nosso abismo. “Mas dizei uma palavra e serei salvo.”

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM.

 


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