PROTESTOS NA “RÚSSIA BRANCA”

Entenda a crise política na Bielorrússia

Brás Oscar · 19 de Agosto de 2020 às 16:54 ·

O presidente Aleksandr Lukashenko consegue manter-se no poder há 26 anos e, até o momento, não está claro se os protestos que pedem a anulação de sua eleição representam a vontade da maioria da população

Aleksandr Lukashenko é chamado de “o último ditador da Europa”. Ele é presidente da Bielorrússia desde 1994, mas suas relações políticas com a antiga União Soviética são profundas e antigas. Desde a última semana, Lukashenko é o alvo de protestos de cidadãos bielorrussos questionando a legitimidade das últimas eleições. As reclamações vão desde a prisão de um concorrente até a suspeita de fraude no resultado, onde ele obteve uma vitória com 80% dos votos válidos. A Bielorrússia é um ponto crítico pendente na Europa e as razões para isso envolvem a Rússia mais do que Putin gostaria de admitir.


Quem é Aleksandr Lukashenko?

Lukashenko, que é ex-membro do Partido Comunista da União Soviética, teve formação militar no exército soviético. Depois da caserna, ele foi nomeado vice-presidente de um kolkhoz – fazendas coletivas que mantinham os ex-donos de terra em regime de escravidão – até o penúltimo ano do regime soviético, quando tornou-se deputado no Conselho Supremo da República da Bielorrússia, em 1990. Permaneceu no parlamento até as eleições de 1994, quando elegeu-se Presidente da República. Ainda em seu primeiro mandato, Lukashenko conseguiu impor uma nova constituição, extinguindo os poderes do primeiro-ministro e concentrando toda a autoridade no Presidente, com mandato de 5 anos sem limite de reeleição – há 26 anos, Lukashenko é o único a ocupar o cargo de mandatário máximo em seu país.


Contexto histórico da relação com a Rússia

Bielorrússia significa, literalmente, Rússia Branca. O conceito pode ter surgido num contexto medieval em que as terras eram a única zona na região não ocupada pelos tártaros – povo turcomano vindo da Mongólia –, sendo que “branca” tinha o mesmo sentido que “livre”. No período do Império Russo, o Czar era chamado de Senhor de todas as Rússias – a Grande Rússia (território central e coração do Império), a Pequena Rússia (atual Ucrânia) e a Rússia Branca. O país também tem ligações étnicas com a Polônia e a Lituânia.

E é justamente desde o início do Império Russo, em 1721, que a segurança da “Grande Rússia” depende do domínio de territórios a Oeste e Sul, usados como uma barreira de contenção, uma espécie de fosso ao redor do castelo. Todas as vezes que a Rússia foi invadida, tais territórios-escudos foram primordiais para a salvaguarda do coração do país.

A agência de análises Geopolitical Futures, em recente relatório sobre a situação na região, lembrou que Putin já declarou que a queda da União Soviética, em sua opinião, foi o maior desastre geopolítico da história. É fato que tal evento privou a Federação Russa de seu “sistema de amortecimento”. Estônia, Letônia e Lituânia, por exemplo, foram integrados à OTAN, na Ucrânia estabeleceu-se um governo pró-Ocidente que Moscou disse ter se originado a partir de um levante político organizado pelos Estados Unidos. A Polônia mantém um governo conservador, porém alinhado à União Europeia, da qual faz parte desde 2004.

Para se ter uma noção mais “visual” do que essas mudanças representam no mapa geopolítico, durante a Guerra Fria, o membro da OTAN mais próximo estava a aproximadamente 1.600 quilômetros da atual São Petersburgo. Agora, o mais próximo fica a apenas 160 quilômetros da cidade.

 

Relação Bielorrússia x Rússia

Se, ao fim da Guerra Fria, as forças americanas tivessem ocupado a Bielorrússia, certamente a Rússia veria isso como uma possível ameaça, pois não restaria qualquer país a Oeste como “escudo”. Mas se, por outro lado, a Rússia tomasse o controle da Bielorrússia, estendendo assim seus domínios mais ao Oeste, certamente a Polônia estaria muito preocupada – e a Europa também.

É sabido que já havia alguma presença militar americana na Polônia, e George Friedman, fundador da Geopolitical Futures, afirmou que tal cenário hipotético (Bielorrússia comandada por Moscou) poderia ter levado a uma guerra de fato. Sendo assim, a Bielorrússia permaneceu neutra no rearranjo do cenário geopolítico pós-Guerra Fria.

Essa neutralidade sempre veio calhar para ambos os lados, já que realmente não havia vontade por parte de nenhum dos players de se envolver num confronto armado de tais proporções.

E foi nesse jogo que Lukashenko sempre soube ganhar até então. Ele equilibrou com maestria os anseios do Ocidente e da Rússia, mesmo que essa neutralidade seja apenas aparente; Putin já esteve outrora tentado a desempatar a situação, ao utilizar as necessidades econômicas bielorrussas em proveito próprio. De qualquer modo, Lukashenko consegue manter-se no poder há 26 anos e, até o momento, não está claro se os protestos que pedem a anulação de sua eleição são mesmo representativos da vontade da maioria da população.

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Os protestos e a possível crise regional

O presidente bielorrusso nunca havia sido severamente incomodado por nenhum dos grandes agentes da política global. Mesmo com atos realmente dignos de um tiranete, como mudanças na constituição com óbvias vantagens unilaterais para si.

Mas estas eleições foram diferentes. Em maio, quase 90 dias antes do pleito, Lukashenko prendeu 33 pessoas sob a acusação de serem mercenários russos que estariam trabalhando contra ele no processo eleitoral. Putin negou qualquer envolvimento. Um dos candidatos, o banqueiro Victor Babaryko, também foi preso antes das eleições, sob acusação de evasão fiscal.

Sviatlana Tsikhanouskaya, candidata que assumiu o lugar de seu marido, Siarhei Tsikhanouski, também preso em maio, reivindica para si a vitória com 60% dos votos. Ela fugiu para a Lituânia há pouco mais de uma semana, e desde segunda-feira, 17 de agosto, anuncia que irá formar um governo de transição e irá reivindicar o cargo de Presidente da República. Sviatlana imediatamente já adquiriu a simpatia da mídia mainstream europeia, que já cometeu o despautério de a chamar de “Joana d’Arc bielorrussa”.

Tais ações truculentas de Lukashenko demonstram claramente que o presidente está com medo. E o fato de, em meio às prisões e perseguições, ter posto a culpa até na Rússia, pode significar que ele interpreta a situação da seguinte forma: tanto russos quanto Sviatlana e sua turma de globalistas pró-União Europeia querem, de alguma forma, interferir em seu paraíso particular, forçando-o a ceder ou para o lado europeu ou quebrando a neutralidade e assumindo-se como um “território-escudo” da Rússia.

Há realmente a hipótese de interferência russa em toda essa crise – que só está no começo –, e provavelmente Trump também anteviu essa interferência, já que atrelou a movimentação para a Polônia de um imenso contingente militar alocado na Alemanha à vitória do conservador Andrzej Duda, aliado americano.

Os protestos, que se alastram até Londres, por imigrantes bielorrussos empunhando faixas em frente à embaixada do país, não são, de fato, a peça mais importante agora: talvez sejam mesmo uma cortina de fumaça com a participação da inteligência russa. Numa entrevista em meio às manifestações bielorrussas em Londres, exibida no canal PHVox, o jornalista Ivan Kleber pergunta a uma manifestante sobre a questão da interferência de Vladimir Putin. A manifestante prontamente responde que “Putin não é uma preocupação” e depois se demonstra incomodada com a pergunta. Para ir diretamente para a entrevista, avance o vídeo para 1:36:25.

Durante o desvio do holofote midiático gerado pelos protestos, a União Europeia e especialmente a Rússia podem já estar executando ações nos bastidores para redefinir a política regional. Do ponto de vista russo, aliás, isso é mais que previsível; porém, as eleições americanas podem reduzir o foco de Trump na situação e a crise econômica na União Europeia por conta do vírus chinês pode dar a Putin alguma vantagem.

É possível Lukashenko abrir mão do ­­status quo e tornar-se um protetorado russo de facto. E lembremo-nos, claro, da Crimeia, na Ucrânia, que foi invadida pelo exército russo há apenas 6 anos, após a queda de Viktor Yanukovich, o antigo presidente ucraniano pró-Russia. Lukashenko, aliás, é um dos pouquíssimos líderes mundiais que reconhece oficialmente a Crimeia ocupada como parte da Rússia. Putin, a cada dia que passa, tal qual os antigos Czares, fica mais próximo de se autodeclarar Senhor de todas as Rússias – a Grande, a Pequena e a Branca.

― Brás Oscar é colunista e correspondente internacional em Portugal para o Brasil Sem Medo e para o PHVox.

 


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