ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS
Dá para ganhar? Sim, dá
O que a campanha de Bolsonaro pode fazer para reverter o jogo até o dia 30 de outubro
O resultado do primeiro turno das eleições foi inesperado para muita gente, de ambos os lados do espectro político. No campo do petismo, acreditava-se de fato na possibilidade de vitória em primeiro turno, alimentada por pesquisas cujas falhas metodológicas foram ignoradas pela imprensa para estimular o voto útil e o efeito de manada. No bolsonarismo, o núcleo duro da campanha estimulou a crença na vitória em primeiro turno, reforçada por boas notícias na economia e pela presença maciça de apoiadores do Presidente nas ruas, principalmente durante o último 7 de setembro. Por isso, ao fim e ao cabo, ninguém parece ter ficado muito satisfeito.
Os prognósticos não permitem entusiasmo irrefletido de parte a parte. Lula alcançou 48,4% dos votos válidos, enquanto Bolsonaro ficou em 43,2%. A diferença entre os dois é de pouco mais de seis milhões de votos. Ainda que Lula só precise abocanhar em torno de 30% dos quase nove milhões de votos que sobraram dos demais candidatos para resolver a disputa, a nova composição do Congresso nacional revela clara preferência do eleitorado para a direita. E essa preferência tem apontado para um sentido político de estabilização com a eleição do Presidente, o que tem influenciado na recente adesão de parte das elites políticas ao mandatário no poder.
Ademais, ficou mais uma vez comprovado que uma maior taxa de abstenção tende a prejudicar o petismo, que ainda possui forte apelo entre os mais pobres. Não à toa, a região Nordeste foi uma das que apresentou menor abstenção, onde Lula teve maior massa de votos. Porém, historicamente, a diferença na abstenção entre primeiro e segundo turno tem sido na ordem de mais de 3 milhões de votos de diferença. Isso porque deputados, senadores e governadores que já resolveram o pleito em primeiro turno desmobilizam as estruturas locais para deslocamento do eleitor, e há menos dinheiro para comprar o voto na ponta.
Por outro lado, a larga vantagem de Lula no Nordeste invalidou a tese imperante no bolsonarismo que medidas como Auxílio Brasil e a transposição do São Francisco iriam virar o voto na região. A fidelidade da região ao lulismo se deve a uma série de fatores, mas remete ao déficit histórico de investimentos que vem desde antes do regime militar, revertido em parte durante os governos do PT, numa economia muito dependente de gastos públicos. Além disso, apesar da votação expressiva no Sul, no Centro-Oeste e na maior parte do Sudeste, Bolsonaro foi surpreendido por uma virada petista no Amazonas e por uma eleição apertada em Minas Gerais.
É um cenário complexo para o Presidente da República, que precisa, nesse momento, convencer os indecisos, mas também reduzir a votação do adversário petista. O histórico de eleições presidenciais não é favorável para viradas como essa, que nunca aconteceram em eleições para Presidente. Em termos matemáticos, somente a diferença dos votos na Bahia, no Ceará e em Pernambuco somados compensa o somatório total da vantagem do Presidente em praticamente todos os estados que saiu na frente.
Jair Bolsonaro, porém, tem um histórico de triunfar contra improbabilidades. E não é nem perto de impossível que consiga superar mais esse obstáculo. Porém, isso depende de mudanças na estratégia adotada até aqui, que pode ter contribuído muito para o resultado desfavorável no último domingo.
A investida petista
É preciso entender que o caminho escolhido pelo petismo para sua campanha não trouxe surpresas, mas não oferece soluções simples de contorno. O mote principal da candidatura de Lula gira em torno dos altos custos dos alimentos e dos bens de consumo, em comparação com a “época de ouro” do petismo, com sua política assentada em valorização do salário mínimo, programas de transferência de renda, facilitação do acesso ao crédito e estímulo ao consumo das classes populares.
De fato, até início de julho, o custo da cesta básica havia subido em torno de 26% nos últimos 12 meses, respondendo por cerca de 69,31% do rendimento de um trabalhador que ganha um salário mínimo. É fato que esse cenário começou a se reverter, principalmente após a aprovação da PEC dos Combustíveis, com notícias positivas se acumulando desde então, incluindo certa diminuição nos itens da cesta básica, diminuição da extrema pobreza e aumento da ocupação formal.
O petismo, ainda assim, usou as armas que tinha para multiplicar o efeito de pesquisas pouco confiáveis sobre o crescimento da fome no país. Nisso, teve forte ajuda de grandes setores da imprensa, além de contar com o possível reforço no imaginário popular, dado o crescimento real da população de rua após o desastre econômica da pandemia, símbolo mais popular do aumento da miséria em qualquer lugar do mundo. Além disso, como as boas notícias da economia não se refletiam de maneira equânime no território, foi justamente a região mais afetada pelo desemprego, que deu o maior coeficiente de votos para o PT.
Em outra frente, a campanha de Lula explorou à exaustão as falas de Bolsonaro durante a pandemia, utilizadas para reforçar a ideia que o Presidente teria alguma parcela de culpa nas mais de 600 mil mortes provocadas pela covid-19. E, novamente com a ajuda da imprensa, procurou estimular a percepção de equivalência moral entre os dois candidatos, com especial ênfase na questão do dispositivo apelidado de Orçamento Secreto, depois reforçada pela reportagem do UOL sobre os imóveis comercializados pela família Bolsonaro ao longo das últimas décadas.
Para complementar, o aceno de Lula ao centro político, com a aliança com Geraldo Alckmin (ex-PSDB, atual PSB), além de outros antigos candidatos à Presidência da República, incluindo seu antigo Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles (MDB), ajudou a compor o argumento de defesa da democracia, em contraposição à suposta ameaça bolsonarista, que se expressaria nos ataques frequentes ao Supremo Tribunal Federal (STF), além de trazer um sinal de busca pela estabilidade econômica, para atrair liberais desavisados.
Erros de campanha
As opções tomadas pela campanha de Bolsonaro apontaram para uma direção diferente. O Presidente e sua equipe apostaram forte no discurso da retomada econômica, das medidas tomadas para baixar a inflação e no aumento do Auxílio Brasil. Os comerciais veiculados na televisão e rádio foram em sua maior parte em tom positivo, bastante ameno. Nesse esforço, procurava-se não só responder à crítica petista, mas também conquistar indecisos, principalmente mulheres e eleitores mais pobres, ponto fraco nas preferências do Presidente. O tom na maior parte das peças foi nitidamente propositivo, em torno do aprofundamento das conquistas do governo em muitas áreas.
Essa busca excessiva por moderação provocou alguns efeitos indesejados, que podem ter contribuído para uma votação menos expressiva do Presidente. Pois ela veio acompanhada de uma perda de ênfase em muitas áreas que levaram o eleitorado a passar batido por temas que são importantíssimos para a reeleição de Bolsonaro: defesa da gestão na questão da pandemia, políticas sociais para os informais, segurança pública, aborto e pautas de costumes.
É verdade que as exigências de governabilidade que levaram o Presidente ao alinhamento com o chamado Centrão impediram que este se apresentasse novamente como um candidato disruptivo, ainda que parte da aura de outsider tenha sido preservada com o mote de enfrentamento direito ao STF. Porém, esses são temas em que Bolsonaro continua nadando de braçada. E que comportam uma crítica simétrica ao petismo e ao que essa força política representa como alternativa.
Contudo, quando o petista foi atacado pela campanha bolsonarista, a ênfase prioritária das críticas girava em torno das acusações de corrupção. O ataque ao argumento petista de que Lula teria sido “absolvido” pelo STF foi bastante eficaz, tanto nas peças de publicidade, quanto nos debates. Porém, críticas em outros campos quase que se limitaram a falas recentes do petista, sem a construção de uma narrativa consistente que despertasse a rejeição do eleitorado.
Ao contrário de 2018, quando Bolsonaro concorreu por um partido pequeno e sem qualquer estrutura, esperava-se que o Partido Liberal (PL) demonstrasse maior capacidade de utilização dos recursos disponíveis. O que se viu, porém, parece ter sido a concentração do dinheiro nas campanhas para o Legislativo e nas majoritárias estaduais. Em muitas cidades do país, praticamente não se viam adesivos do Presidente à disposição dos eleitores comuns, nem bandeiras ou quaisquer materiais que servem para demonstrar publicamente apoio e chamar a atenção de indecisos.
Por outro lado, o posicionamento do Presidente como líder efetivo das massas, sedimentado já no 7 de setembro de 2021, parece ter contribuído para uma dependência excessiva do eleitor. Para além das grandes manifestações durante o Bicentenário da Independência, quase que somente na última semana houve maior mobilização simultânea em várias cidades. Antes disso, os eventos pareciam estar a reboque da agenda do Presidente. Tampouco se via orientação adequada sobre como as pessoas poderiam de fato contribuir com a campanha, convencendo indecisos, argumentando de maneira correta e virando votos com os menos convictos.
Dá para fazer diferente
Cada um desses temas comporta um universo de possibilidades a serem exploradas, desde que haja mudança de rota. No caso da gestão da pandemia, por exemplo, o reposicionamento do Presidente em relação às declarações infelizes que proferiu no passado, acompanhado da defesa cientificamente fundamentada da crítica ao lockdown e da defesa do tratamento precoce, pode reverter parte significativa da rejeição intensificada pelo eleitorado petista. Principalmente se isso aparece articulado com a promoção de uma das maiores políticas de vacinação em massa do mundo, das políticas sociais e dos programas de crédito criados para mitigar os efeitos perversos da pandemia.
No campo da segurança pública, por sua vez, o tratamento dado pela campanha foi em tudo lamentável, principalmente considerando os números positivos do governo nesse campo. Na propaganda veiculada na televisão, sequer havia um desenho da curva de redução de homicídios, ou a explicitação do percentual histórico alcançado. A associação do PT com o crime se limitou à exploração de falas de Lula a esse respeito. O eleitor não foi minimamente esclarecido sobre o posicionamento do petismo em relação a temas como fim da saidinha, redução da maioridade penal, aumento de penas, visita íntima em presídios de segurança máxima, castração química para estupradores, ligações com o narcotráfico internacional etc. Aliás, o abandono mesmo de propostas mais radicais do bolsonarismo na propaganda veiculada em rádio e televisão serviu para que esse tema passasse praticamente batido.
Na questão do aborto, o presente dado por uma fala recente de Lula este ano, em defesa da legalização da prática, ainda não foi devidamente explorado. Quase ninguém conhece as condenações de Bento XVI de católicos que simplesmente apoiarem candidatos favoráveis ao tema. Além disso, o eleitor médio não sabe, por exemplo, que o aborto provavelmente será aprovado pelas instâncias superiores do Judiciário, e que o próximo Presidente, portanto, possui influência direta sobre isso, já que vai indicar dois ministros paras as Cortes. Tampouco tem conhecimento sobre a forma como o petismo trata do tema em documentos oficiais do partido, nunca renegados por Lula. E não está informado sobre a indústria milionária da morte que deve se instaurar no país caso isso aconteça.
Em termos de pautas de costumes, a campanha não tem utilizado devidamente a promoção de iniciativas importantes, como as escolas cívico-militares, que são importantes símbolos de ordem com forte penetração entre os mais pobres. Esse contraponto tende a ter muito apelo quando comparado com o ensino da ideologia de gênero e outros temas correlatos. O projeto, inclusive, também se conecta com outro tema, relacionado com violência nas escolas, muito pouco explorado pelo governo até aqui, em que pese a evidência de sua importância para milhões de pessoas no Brasil.
No quesito das políticas sociais, existe ainda um campo potencialmente explosivo, que é a comunicação com trabalhadores informais. Essa categoria, talvez a mais prejudicada pelas restrições econômicas da pandemia, já vem sendo apontada por estudiosos como proto-bolsonarista, por uma série de razões. São pessoas que usam do dinheiro de programas de transferência de renda como capital de giro, que não gostam de depender do Estado, rejeitam a parcela mais imprestável da pobreza, odeiam violência e possuem senso de autonomia e empreendedorismo. O governo construiu estratégias interessantes de microcrédito que tem beneficiado esse público, mas ainda não foi capaz de desenvolver uma comunicação que faça com que ele se identifique de fato com o Presidente como seu grande defensor e amigo. Nesse campo, a inteligência política consiste em furar o imaginário comum da massa que se beneficia de programas de transferência de renda, falando diretamente com um público diferenciado, que não se identifica com a imagem comum do pobre nordestino que sempre foi público preferencial da propaganda petista. Ao romper a indistinção, fomenta-se o desejo pela diferença. E o desejo pela diferença gera a busca por símbolos identificadores comuns, que incluem valores, crenças, preferências, rejeições e modelos. É onde entra o Presidente, como campeão em potencial dessa camada da população, tradicionalmente esquecida pela comunicação política.
Essas mudanças na propaganda e no discurso podem ser articuladas com uma orientação partidária diferente do PL. Os diretórios do partido precisam organizar agenda de mobilização com uso intensivo das redes sociais para estimular o eleitorado a se agregar com mais consistência, sem depender da presença do Presidente da República. Isso inclui adesivaços, paradas em sinal, uso de bicicletas e carros de som, entre outras estratégias que podem produzir efeito bastante positivo.
Por outro lado, é possível criar um diálogo mais azeitado entre intelectuais, políticos e influenciadores para a produção de argumentos embasados, mas de fácil digestão, que possam servir de orientação para ação política do eleitor mais engajado, com capacidade real de conversão de votos. Isso inclui lives, vídeos, participações em programas de emissoras simpáticas ao Presidente, que possam ser recortadas e veiculadas na rede, servindo de insumo para a ação política mais direta.
Ações como essas podem trazer vigor renovado para a campanha, produzindo efeitos positivos que ultrapassam mesmo o cenário eleitoral. É claro que nada disso dará resultado sem o engajamento do eleitorado. Eleição se conquista na base do convencimento. E o melhor cabo eleitoral que existe é o cidadão comum, falando de olho no olho com um seu igual. Portanto, a mudança de rumo também tem que ser de cada um de nós. Essa virada de chave é certamente o passo mais importante para uma vitória no dia 28. Dá para ganhar, mas desde que cada um faça o seu papel.
– Eduardo Matos de Alencar é escritor, sociólogo e analista político. Autor do livro “De quem é o comando? — O desafio de governar uma prisão no Brasil”. Também trabalhou como pesquisador e roteirista em Nem Tudo se Desfaz, documentário sobre as causas da eleição de Bolsonaro em 2018. É presidente do Instituto Arrecife.
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