DIÁRIO DE UM CRONISTA

Cuidado com o gordo — Lembranças de Delfim Netto

Paulo Briguet · 12 de Agosto de 2024 às 19:33 ·

Czar da economia, Delfim colecionava as charges em que era retratado. Hoje os ministros gordos processam os piadistas

Meu pai tinha grandes virtudes, mas era uma das pessoas menos musicais que já conheci. Mesmo assim, ele adorava música, gostava muito de me ouvir tocar violão e, de vez em quando, acreditem, tentava compor marchinhas de carnaval.

Eu devia ter uns oito ou nove anos quando meu pai iniciou a composição de uma marchinha intitulada Cuidado com o gordo. Logo cedo, antes de sair para o trabalho, ele cantarolava no banheiro:


Cuidado com o gordo! Cuidado com o gordo!

Pois esse gordo é mesmo assim...

Cuidado com o gordo! Cuidado com o gordo!

O que ele quer é o nosso fim...


No café da manhã com a família, meu pai repetia a canção, como se nós já não houvéssemos ouvido perfeitamente a cantoria no banheiro.

Naquele tempo, Delfim Netto era conhecido como o “czar da economia” da ditadura militar; ocupou diversos cargos no regime, de Costa e Silva até Figueiredo. Foi ministro da Fazenda, do Planejamento e, se estou bem lembrado, até da Agricultura (ou isso foi só uma piada do Jô Soares?).

Quando veio a “Nova República” e o sonho do Plano Cruzado virou pesadelo, Delfim confeccionou adesivos para carro com um slogan genial:
 

DELFIM: EU ERA FELIZ E NÃO SABIA


A partir do governo Sarney, Delfim elegeu-se deputado federal por vários mandatos. Era uma das fontes preferidas da grande mídia quando o assunto era economia. Crítico acerbo dos planos econômicos de Sarney, mesmo assim votou pelos cinco anos de mandato do autor de Marimbondos de Fogo.

Durante os anos 80 e 90, Delfim Netto era a própria definição do “economista de direita”. E todo mundo acreditava — mesmo ele tendo sido ministro de um governo que criou mais estatais que Lênin. O próprio Delfim — reconheçamos aqui a sua sinceridade — admitia em entrevistas sua imensa admiração pelo socialismo fabiano. Um de seus ídolos era George Bernard Shaw, um dos fundadores da Sociedade Fabiana. Acaso ou não, sua única filha se chama Fabiana Delfim.

Lembro-me de uma matéria no caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, publicada pelos idos de 1985, em que os dois entrevistados eram Delfim Netto e o então senador Fernando Henrique Cardoso. O título era alguma coisa como “Direita e esquerda travam duelo intelectual”. FHC e Delfim faziam comentários irônicos sobre suas preferências em literatura, música, cinema e artes plásticas. Na verdade, eram parecidíssimos. Em suma, eram dois políticos de esquerda — mas o Olavo ainda não havia surgido para nos explicar isso.

Delfim ajudou a preparar o terreno para a chegada de Lula ao poder, em 2002. Durante um tempo, ele chegou a dizer que Lula não seria um candidato competitivo, apenas um sparring do sistema político, mas esse discurso mudou quando Delfim entendeu que o próprio sistema queria Lula. Hoje sabemos que Delfim sempre foi um conselheiro de Lula em questões econômicas e políticas. Poucas vezes uma parceria refletiu tão bem o teatro das tesouras.

Uma das qualidades de Delfim era o bom humor. Certa vez, numa entrevista à Playboy, ele disse: “A maior parte das críticas que fazem a mim é me chamar de gordo. Mas eu sou gordo!” Tinha um hobby curioso: colecionava as charges que o retratavam. Uma das mais engraçadas foi publicada na Folha de S. Paulo, durante um alinhamento de planetas no sistema solar nos anos 80. O desenho mostrava todos os planetas lado a lado, mas Delfim gravitava fora da ordem, e Júpiter lhe dava uma bronca:

— Olha o alinhamento, rapaz!

Delfim certamente deu muita risada e incorporou a charge à sua coleção. Hoje em dia os ministros gordos processam humoristas e são capazes de colocar a Polícia Federal atrás de quem lhes comenta a adiposidade.

Há 20 anos, fui a um sebo no centro de São Paulo, bem pertinho da Ladeira da Memória retratada por José Geraldo Vieira em seu célebre romance. Procurava um livro do poeta português Herberto Helder, Photomaton & Voz. Fiquei felicíssimo ao encontrar o livro que buscava há meses. Ao me dirigir para o caixa, vi que um senhor obeso e de baixa estatura descia de uma escada, após procurar por algum livro no alto da prateleira. Adivinhem quem era.

Arrependo-me bastante de não ter iniciado uma conversa com Delfim. Limitei-me a observá-lo de longe e cantarolar em pensamento a marchinha que meu pai compôs em homenagem a ele. Arrisco-me a dizer que ele daria risada ao ouvir a música.

Será difícil conseguir uma oportunidade igual; não se fazem mais gordos como antigamente.


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Frases de Delfim Netto:

“Marx foi um grande pensador do século XIX. Se tivesse nascido no século XX, nós seríamos os marxistas e eles os antimarxistas.”

“A economia é a arte de gerir escassez e criar abundância.”

“A inflação é um imposto que não precisa de lei para ser criado.”

“No Brasil, o problema não é a crise, mas sim a administração da crise.”

“Os governos gostam de medidas que têm efeito imediato, mesmo que sejam efêmeras.”

“Não há crise que dure para sempre, e tampouco há governo que possa se perpetuar.”

“O sucesso de uma política econômica depende mais da percepção do que da realidade.”

“A dívida externa é uma carga que só se torna pesada quando não se sabe como gerenciá-la.”

“A eficiência econômica não se mede apenas pelo crescimento, mas pela capacidade de gerar e distribuir riqueza.”

“O mercado financeiro é um universo à parte, onde as leis da economia nem sempre se aplicam.”

“A política econômica é um jogo de expectativas, onde a confiança é tão importante quanto as medidas tomadas.”

“O grande desafio da economia brasileira é encontrar um equilíbrio entre crescimento e estabilidade.”

“O Brasil é um país com problemas crônicos e um governo que tenta curá-los com remédios de efeito colateral.”

“A economia é como uma máquina de café: quando você está fora do orçamento, ela derrama a conta inteira em cima de você.”

“A diferença entre o governo e um economista é que o governo pode criar dívidas e gastar dinheiro à vontade, enquanto o economista deve apenas explicar por que isso não funciona.”

“Se a economia fosse uma receita de bolo, o Brasil seria o chefe que insiste em adicionar mais ingredientes sem saber a proporção exata.”

“Os economistas sempre sabem o que fazer em teoria, mas a prática é um território inexplorado, especialmente quando se trata de aplicar teorias em um governo.”

“A economia é como uma piada: você pode não entender completamente, mas isso não impede de você tentar rir da situação.”

“Se o governo comprar um circo, o anão começa a crescer.”

 


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