CRÔNICA

Conversa com um uberista radical

Eduardo Meira · 9 de Fevereiro de 2023 às 18:09

Motorista de aplicativo tem uma discussão muito interessante (e inesperada) com um intelectual que gosta de ironizar os tais “neofascistas”



Nesta semana o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, disse não estar preocupado se o Uber deixar de operar no país caso empresa não concorde com regulamentação. Disse ainda que a empresa pode ser substituída pelos Correios.

Trata-se de uma daquelas clássicas distorções comunistas da realidade. O Uber é o que mais se aproximou de um sistema perfeito de mercado hoje no Brasil dá oportunidade de trabalho para muitos brasileiros. Para se ter uma ideia, o Brasil tem 1,5 milhão de trabalhadores por aplicativo.

Outro fato que me chamou bastante a atenção foi um artigo escrito pelo senhor José Eduardo Agualusa, de nacionalidade portuguesa, ao jornal O Globo, aqui no Brasil. No artigo ele falou sobre um movimento social antigo, e que ocorre em muitos países, o Taxismo Radical.

Apesar de parecer brincadeira, o termo de fato existe, e nasceu da percepção de certos elementos das castas mais abastadas da sociedade que, ao sair de suas bolhas e se sujeitar a humilhação de pegar um táxi, ficavam embasbacados com as opiniões mais radicais dos taxistas. É muito comum que se faça, hoje em dia, a comparação das redes sociais com aquelas viagens de táxi. De fato, é quando a opinião do povo chega ao ouvido das elites e classes dominantes. E sim, eles realmente se assustam. Sentem-se intocáveis, demasiados sofisticados e cheios de classe. O restante da população é somente uma massa burra que tem que ser guiada e educada por eles para que sirvam aos seus propósitos pessoais.

O meu amigo e companheiro de banda Rodrigo Constantino escreveu lá nos idos de 2014 um excelente artigo na Gazeta do Povo sobre um taxista radical, em que ele relata a sua experiência com um taxista que clamava por intervenção militar. À época ele se mostrou intrigado, no entanto compreendeu a revolta daquele cidadão ao ver o PT depenando o Brasil por tantos anos. O título completo do artigo era “Um taxista radical: O monstro em gestação” — e eu recomendo a leitura.

No artigo dO Globo, o senhor Agualusa primeiramente fez uma ode à ironia, a qual, segundo ele, é uma excelente arma contra uns tais “neofascistas”, pois esses sempre irão sucumbir àquelas figuras de retórica, dada a sua burrice e incapacidade cognitiva naturais. Talvez Agualusa desconheça a frase Left can’t meme (A esquerda não sabe fazer meme), cunhada debaixo de escândalos e choradeiras feitas por “neocomunistas” quando alvo de ironias na internet.

O conteúdo principal do artigo é o nobre português contando como lidar com charme, prudência, requinte e ironias bem encaixadas numa conversação com o atroz motorista de táxi, o qual, em suas palavras, conta com um jargão “nunca o país esteve tão ruim”, reclamando do atual governo socialista para, em seguida, mostrar seu saudosismo por regimes autoritários como os de Bolsonaro, Trump, Pinochet, Salazar e demais personagens.

Coincidentemente eu passei por uma situação parecida. Neste caso eu era motorista de Uber e tive a honra de receber em meu automóvel um senhor peculiar. Jeito faceiro, barba muito bem torneada e uma voz bem peculiar, seu nome era Luís Calamar da Silva. Foi lá na Rua Dias Ferreira, no Leblon.

— Bom dia, senhor Calamar!

— Bom dia, senhor motorista de aplicativo.

— O país nunca esteve tão ruim — comentei. Notei um sorriso maroto, meio de lado, nascendo em sua face de sessenta e tantos anos. Mas percebi que ele usou a técnica do autocontrole, do silêncio profundo. Ante o silêncio grave, desafiei mais uma vez:

— Fico, às vezes, até desmotivado e desgostoso. Insegurança jurídica, censura... e a tendência, depois das últimas eleições, é piorar.

Foi nítido o incômodo do senhor Calamar que, com ares professorais, lançou mão de sua segunda técnica: a de extremar posições até o absurdo.

— Tem razão, amigo. O país nunca esteve tão mal. Veja o SUS, nosso sistema público e gratuito de saúde. Sabia que foi inventado por socialistas? O senhor, quando passa mal, vai a hospitais públicos?

— Eu até tento — respondi. Mas as filas são sempre terríveis. Nunca consegui ser atendido. Acabo tendo que ir a um particular mesmo. No fim das contas tive que pagar um plano de saúde da Bradesco. É absurdo, né? Eu já pago pelo sistema público e gratuito, o tal socialista, e ainda fico obrigado a pagar um particular também. Isso sem contar que aquilo ali é uma máquina de licitações fraudulentas. O destino do nosso dinheiro é sempre o bolso dos que inventaram esse sistema. Ah, a não ser que você tenha bons amigos. Um passageiro uma vez disse que quando precisa ir a uma UPA, ele liga no diretor e é o primeiro a ser atendido. Ele era até um artista conhecido... e o senhor? Vejo que tens uma marca de cirurgia no braço. Fez no SUS?

— Bom, foi no Sírio Libanês...

— Ah, Claro! Muito bom aquele hospital, né!?

Após uma certa hesitação, a tática do senhor Calamar foi mudar o assunto. Ele começou a falar de feminismo e recuou aos tempos da inquisição:

— Nos tempos da inquisição é que era bom! Pegavam as feministas, chamavam-nas de bruxas e as queimavam em praça pública. Acho que devíamos voltar a queimar essas feministas bruxas em praça pública.

— Senhor Calamar, eu acho um pouco excessivo.

Esta foi a hora certa para ele lançar mão da sua tática mais elaborada — acusa-os do que és.

— Excessivo? O senhor é comunista? Isso é papo de comunista. Daqui a pouco vai falar contra a escravatura!

— Hahaha. Que é isso, senhor Calamar? Não sou comunista. Sabe, na verdade, inquisição e caça às bruxas são duas entidades diferentes. Mas não precisamos entrar em detalhes. Acontece que na Idade Média a Igreja não era uma entidade privada como entendemos hoje. E ao se conhecer a história, percebemos que foi justamente o conceito de religião se confundir com governo que tudo descambou. A identidade e a força de um rei absolutista vinham da religião que se declarava. No final das contas, os tribunais de inquisição começaram com um bom intuito, de colocar ordem dentro da própria Igreja, mas acabaram se transformando num instrumento de governo. Mas o movimento feminista pioneiro é motivo de orgulho, senhor Calamar. Nunca vou condenar! Eu mesmo fico muito triste de ver que existem mais homens que mulheres nas cadeias, nas ruas em situação de vulnerabilidade, na guerra, mais homens se suicidam que mulheres. Ontem mesmo pedi um botijão de gás lá em casa e foi um homem que trouxe. Sou a favor das mulheres enchendo caminhões de cimento, carregando botijão de gás e tudo mais. Os direitos têm que ser iguais.

— Veja bem...

— A escravatura... nós temos que dar graças a Deus que existiam os republicanos para acabar com ela lá nos EUA. Os democratas eram radicalmente contra. Lá nos EUA o presidente republicano que mais lutou contra a escravidão foi assassinado. Aqui no Brasil foi um monarquista, o Dom Pedro II. E perceba que ele foi exilado por tomar, junto com sua filha, tal decisão.

Enfim a hora da parada chegou, frente a um bar de vinhos. Percebi vários cidadãos barbudos de terno, bebendo vinhos caros, fumando charutos cubanos, balançando seus Rolex e rindo à vontade. Como podem estar tão felizes? Eu não conseguia entender.

— Tchau, senhor Calamar. Uma boa-noite para o senhor!

O distinto senhor saiu, empunhando o terno no afã de vesti-lo. Notei um certo estado de confusão mental e até revolta. Afinal, como pode um mero condutor de Uber saber história, política, ter tantos conhecimentos gerais O senhor Calamar estava nitidamente pensando no perigo que isso pode causar. Como lembrou Chico Science: “A certeza do povo daqui é o medo do povo de lá”.

Eduardo Meira é empresário, professor e poliglota, morou 4 anos na China e fala fluentemente português (nativo), chinês, inglês e espanhol, além de se comunicar em russo e francês para assuntos do dia a dia, e de arriscar diálogos em árabe.

 


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