LITERATURA

Contrabando — Um conto de Renan Rovaris

Especial para o BSM · 12 de Outubro de 2023 às 17:09 ·

O dia em que Seu Honório foi pego pela fiscalização na fronteira

Como de costume, Seu Honório, um brasileiro antigo, fazia sua viagem ao Paraguai. Já no caminho de volta, o Chevrolet Monza 1997 riscava a traseira — rebaixada pelo peso — na PR-323, sentido Maringá. O carro vinha abarrotado de cima a baixo. Deixaram espaço apenas para o senhorzinho, magrelo como Cristo Crucificado, dirigir espremido contra o volante. Mesmo o painel serviu de depósito; nem porta-luvas, nem banco do caroneiro escaparam: havia ali espaço para mais vinte e tantos quilos de material. O homem mal conseguia trocar suas marchas sem esbarrar na mercadoria, empilhada grosseiramente ao derredor do motorista. Quem passasse pelo rastro de seu percurso sentiria os pneus carbonizados exalando cheiro de aquecimento global, houvesse lugar para pedestres naquela rodovia esburacada feito terra de ninguém, vigiada a olhos de águia pelos bravos agentes da Polícia Rodoviária Federal.

Foram esses olhos de predador camuflado entre o capim crescido à beira da estrada que avistaram Seu Honório ao longe.

— Atenção, homens! Suspeito seguindo em sentido nordeste! Vamos salvar o país! — gritou o Sargento, fazendo seu espesso bigode grisalho tremer excitado por trás do binóculo de uso exclusivo militar.

Sentados aos roncos, abraçados aos seus fuzis com amor de adolescente apaixonado, os policiais sobressaltaram, prontos para o combate à morte em defesa da pátria.

A viatura saiu dentre o matagal enfurecida, perseguindo sua presa com rugir de sirenes ensurdecedoras. As metralhadoras foram colocadas janela afora, seguidas pelas cabeças semicarecas dos oficiais, mirando ameaçadoramente em direção ao carro, que ia uns duzentos metros à frente.

— Aparelha nele, Sargento! Aparelha que eu vou acertar a roda traseira do desgraçado!

O Sargento esmagou o pedal com força e boa vontade servil; a viatura obedeceu de pronto, feito cavalo aos relhos: em trinta segundos, a Cherokee 4x4 estava na cola de Seu Honório, que mal percebeu a aproximação — o dinheiro do contribuinte brasileiro nunca fora tão bem empregado quanto naquela guarnição.

O meliante dirigia tranquilo; procurava às apalpadelas o isqueiro para acender seu terceiro maço importado, sem perceber as ordens para encostar o veículo. Quando finalmente colocou a mão sobre o objeto, pousado às escondidas no espaço sob o freio de mão, Seu Honório sentiu um solavanco violento no volante.

— Filha-da-puta! Matei um cachorro! — gritou o homem de si para si. Desesperado, sem controle do carro, pisou bruscamente no freio e virou o volante. Foi o que faltava para que o pobre Monza 97 entregasse as forças, tombando miserável sobre a lateral.

Na viatura, Cabo Ramires vibrou orgulhoso:

— Rá-Rá-Rá! Eu tô ficando muito bom nisso, Sargento! — Era exemplar a maneira como seguiam o protocolo, aqueles homens de honra e coragem.

Seu Honório viu tudo em câmera lenta. Viu a linha do horizonte girar à esquerda até tornar-se vertical, o isqueiro voar pelo pára-brisa, estilhaços de vidro chuviscarem sobre sua cabeça. Uma ardência aguda e repentina pontilhava-lhe a testa, pouco acima das sobrancelhas; sentiu o sangue quente ensopar-lhe os cabelos. Sua visão virou um túnel profundo, empretecendo de fora para dentro, até apagar-se num ponto pequeno em frente aos olhos pesados.

Quando voltou a si, o preso estava algemado. O Monza sentava tristemente à beira da estrada, já sobre as quatro rodas, duas delas murchas como balões em fim de festa. Pilhas e pilhas de mercadoria revirada misturavam-se a cacos de vidro debaixo da carcaça amassada do automóvel bordô.

De repente, Seu Honório se viu diante de um grave microfone cabeçudo, com o selo da emissora de televisão local estampado num cubo branco logo abaixo do volume oval por onde o som era captado. A equipe de mídia fora avisada sobre a operação pela própria PRF, que via grande necessidade em divulgar seu ilibado trabalho em prol da segurança nacional. Era preciso acabar com o preconceito sofrido pela instituição neste país afogado em ideologias.

— E agora, Seu Honório, vai fazer o quê? — questionou o repórter, empurrando o objeto fálico debaixo do nariz do entrevistado.

— Ah, agora é ir pra cadeia, né? Tem jeito não.

— Mas o senhor trazia isso tudo pra quê?

— Era só pra consumo próprio mesmo. Não era pra mais ninguém, não.

— O senhor ia usar isso tudo sozinho, Seu Honório? 

— Era pro resto da vida, né? Pra não precisar ficar indo e voltando; aí eu trouxe tudo duma vez só.

— Mas não é muita coisa, não?

— Cê lê?

— Eu não.

— Que bom. Eu leio; leio muito.

— O senhor é algum acadêmico, Seu Honório? Fez faculdade?

— Fiz nada, não, meu filho. Eu leio é pra mim mesmo, pra entender das coisas.

— Entender o quê com tanto livro?

— Ah, um pouquinho de tudo, né? Geopolítica, relações internacionais, história, teologia… Até leio uns romances do Augusto Roa Bastos de vez em quando. Esses dias mesmo eu tava tentando decifrar as camadas redacionais da Fonte Q dos Evangelhos Sinóticos.

O repórter fez cara de entendido e seguiu perguntando profissionalmente:

— E está trazendo todos esses livros escritos em espanhol? Vai ler isso como, seu Honório? Não tem nem formação…

— Ué! Espanhol é igualzinho português. Todo mundo lê espanhol no Brasil, num lê, não?

— E o senhor, Sargento — disse o repórter, virando-se agora para o militar, que colocava-se ao lado do prisioneiro em posição de sentido, com a cabeça heróica muito erguida e ar de reflexão profunda —, como vê a situação?

— Olha, este meliante sem-vergonha está de brincadeira achando que nós vamos acreditar que esses livros todos seriam lidos por ele! Quem lê tanto livro assim no Brasil? Certamente, a mercadoria seria entregue a algum doutor bacharel ou cursinho pré-vestibular. Nossa equipe de investigação fará a análise e apresentará a denúncia de pronto ao Ministério Público; e ele vai preso em flagrante por contrabando, esse safado! É por gente assim, que não pensa na indústria nacional e na contribuição tributária, que o país anda tão mal.

Renan Rovaris é escritor e designer.

 


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