CRÔNICAS
Casa da dor, casa do amor
Uma pequena história do Hospital do Câncer de Londrina
Entrei no carro e percebi o terço dependurado no retrovisor da motorista.
— Há quanto a sra. trabalha no Uber? — perguntei para puxar conversa, como sempre faço.
— Faz uns três anos — disse a mulher, em tom simpático.
— E antes a sra. trabalhava com quê?
— Eu era agente do serviço secreto romeno.
Mentira. Eu só escrevi isso pra saber se você estava prestando atenção na minha história. Porque a história, apesar de simples, a merecerá.
A resposta verdadeira foi:
— Eu era funcionária de uma empresa multinacional. Trabalhei lá por 30 anos e me aposentei.
— E a sra. trabalhava aqui em Londrina mesmo?
— Não. Eu trabalhei em Curitiba, depois vim para cuidar do meu pai. Ele faleceu há três anos, e eu entrei no Uber.
Fez-se um breve silêncio.
— Posso perguntar uma coisa? — disse a motorista.
— Claro.
— Por que o sr. está indo ao Hospital do Câncer? Vai visitar algum paciente?
— Não, na verdade eu vou visitar uma amiga, que é voluntária do hospital.
— O sr. acha que o hospital é um lugar triste?
— Olha, depende de como você observa. Sem dúvida, tem muita dor aí dentro. Mas também tem muito amor. E pessoas bondosas, como essa minha amiga.
O carro se aproximou da entrada do hospital. Antes de abrir a porta e me despedir, eu disse à minha interlocutora:
— Bonito terço. A sra. já rezou hoje?
— Já. Mas posso te contar uma história sobre esse terço? É bem rapidinho.
— Claro que pode. Eu sou cronista, adoro histórias.
Então ela me mostrou uma das dezenas do terço; por sobre as contas, estavam escritas as letras do seu nome: Maria Clara.
— Um dia vim trazer um paciente aqui. Parecia uma pessoa bem simples. Disse-me que estava com um tumor no fêmur, sentia muitas dificuldades para se locomover. Quando chegamos, ele percebeu que havia esquecido o resultado dos exames em casa. Ficou desesperado e disse que não tinha dinheiro para pagar mais duas corridas. Então eu disse: “Quem falou em cobrar as corridas? Vamos lá”. Levei o passageiro de volta para casa, ele pegou os exames e retornamos ao hospital. Eu o ajudei a caminhar até a sala de atendimento. Ele me garantia que pagaria as corridas, eu disse que não precisava. Mas ele insistiu e anotou o número do celular. Tempos depois, ele me presenteou com esse terço que você está vendo.
— Que história bonita, Maria Clara! Agora eu vou te contar uma. Há 30 anos, entrei com minha mãe neste hospital, e as pessoas que trabalham aqui salvaram a vida dela. Ela viveu muitos anos, viajou, conheceu os netos, foi feliz. Depois de 16 anos de uma vida plena, ela foi trazida de volta para cá, carregada por mim e por um motorista de táxi. Está vendo aqueles pacientes, Maria Clara? Para cada um deles, há pelo menos uma outra pessoa que o ampara.
Onde há dor, há amor.
— Paulo Briguet é filho da saudosa Aracy, escritor e editor-chefe do BSM.
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