GEOPOLÍTICA

Aliança Rússia-China: o triunfo da desorientação

Especial para o BSM · 18 de Março de 2023 às 08:51

Como devemos entender a política externa pró-comunista da Rússia? Por que Moscou age, nas questões internacionais, como se a União Soviética ainda estivesse em vigor?



Por Jeffrey Nyquist

No último dia 15 de fevereiro o governo comunista de Havana agradeceu o governo russo pela doação de 25.000 toneladas de trigo para Cuba. A ministra do Comércio Exterior, Ana Teresita González, falou das “muitas ações desse tipo” realizadas por Moscou.[ iii ] Em abril de 2022, o governo russo já havia doado cerca de 20.000 toneladas de trigo para a Cuba comunista. [ iv ] Enquanto isso, a Coreia do Norte comunista vem escondendo suas remessas de munição para a Rússia em apoio de Putin na guerra da Ucrânia. [v] Ainda mais curioso, a Rússia é alinhada com o Vietnã comunista [vi], e tem enviado tropas à Venezuela em amparo ao ditador comunista Nicolás Maduro, [ vii ] e também foi convidada por outro ditador comunista, Daniel Ortega, a enviar tropas para a Nicarágua,[ viii ] e conduziu exercícios conjuntos com as forças armadas da África do Sul (onde o ANC, o partido governante, tem sido há tempos uma fachada para o partido comunista local). [ ix ] Ainda mais significativa, no entanto, é a emergente aliança entre a Rússia e a China comunista. Um pouco antes de iniciar a sua invasão total da Ucrânia, a Rússia e a China comunista fizeram uma declaração conjunta a respeito de uma “nova era” sob uma nova ordem global. Com efeito, o país comunista mais populoso do mundo aliou-se à Federação Russa, uma nação que supostamente abandonou o seu sistema comunista em dezembro de 1991 em favor da economia de mercado e das reformas democráticas. Contudo, no fim, o presidente Vladimir Putin da Rússia e Xi Jinping da China, ambos, dizem que a amizade entre os seus dois países “não tem limites”. [x]

Como devemos entender a política externa pró-comunista da Rússia? Por que Moscou age, nas questões internacionais, como se a União Soviética ainda estivesse em vigor? Alguns irão dizer que o alinhamento da Rússia ao comunismo e a invasão da Ucrânia são uma resposta apropriada à expansão da OTAN. Mas se Rússia realmente se tornou uma democracia de livre mercado e não um estado criptocomunista, então por que os seus vizinhos europeus estão com tanto medo de uma invasão ao ponto de todos eles terem ingressado ou quererem aderir à OTAN? Não seria porque o “império do mal” nunca desapareceu realmente? Sob o comunismo, Moscou enviou tropas invasoras, em tempos de memória recente, a todos os países europeus adjacentes às suas fronteiras. Moscou pisoteou os povos da Europa Oriental. Esse é o motivo pelo qual um país tradicionalmente neutro, como a Suécia, quer aderir à OTAN. Além disso, se o perigo provém daquilo que chamam de imperialismo americano, não estariam todos esses países correndo para se juntar à Rússia em vez de à OTAN? Para ver a situação com clareza, é preciso levantar e responder corretamente essas perguntas.

Colaboradores russos, transmitindo slogans antiucranianos (por exemplo, que Ucrânia é “o país mais corrupto do mundo” etc.), insistem que a OTAN está conspirando para destruir a Rússia. Mas faça a si mesmo a seguinte pergunta: poderiam todos esses pequenos países — Suécia, Finlândia, países bálticos — estarem conspirando sob o comando do “imperialismo americano” para cercar e destruir a principal potência nuclear do mundo? O maior país do mundo? Ou esses pequenos países agem para se proteger porque estão com medo? O Kremlin publicamente reclama que América está “cercando a Rússia”; mas Moscou tem apoiado regimes comunistas na América Latina (exemplos: Cuba, Nicarágua e Venezuela) em um esforço de cercar os Estados Unidos. Aqui encontramos um cínico padrão de jogo duplo, característica de Lênin e de seus seguidores. A Rússia tem onze fusos horários e agora invadiu um décimo segundo. Para aumentar ainda mais essa comédia, oficiais russos têm sugerido “tomar de volta” o Alasca. Afinal, o Alasca era originalmente território russo. Talvez venha a ser russo novamente. E o único “cerco” da Rússia visível em um mapa encontra-se na costa da Sibéria, no estado do Alasca, que pertence aos Estados Unidos desde que foi comprado do czar em 1867.  Alguns anos atrás, o presidente da Duma, Vyacheslav Volodin, aludiu ao Alasca da seguinte forma: “Quando eles [os legisladores americanos] tentam se apropriar de nossos ativos no exterior, devem estar conscientes que nós também temos algo a tomar.” Um vice-presidente da Duma propôs a realização de um referendo com a população do Alasca perguntando se querem juntar-se à Rússia. “Nós não interferimos em seus assuntos domésticos”, acrescentou, tentando não rir enquanto era aplaudido pelos deputados russos. [XI]

E agora, com tropas russas agredindo furiosamente as defesas ucranianas, a Rússia volta a fazer ameaças veladas contra o Ocidente. Aparentemente, a república soviética da Ucrânia deve ser reincorporada à pátria. Na verdade, Moscou fala como se a soberania ucraniana sempre tivesse sido uma ficção (inventada, diz Putin, por Vladimir Lênin, o fundador da URSS). Isso provoca algumas perguntas. Se a Ucrânia sempre foi parte da Rússia, então por que a Rússia fingiu reconhecer a soberania ucraniana em 1991 e em 1994 com o Memorando de Budapeste? Qual era o ardiloso propósito de tal fingimento? E se a independência ucraniana era uma farsa, não o seria também o colapso da União Soviética? O fato é que a Revolução da Dignidade levou à genuína independência da Ucrânia em 2014. A Rússia respondeu anexando a Crimeia e invadindo Donbass; depois, em 2022, invadindo toda a Ucrânia. Antes da Revolução de Dignidade, Moscou governava indiretamente a Ucrânia por meio de um partido corrupto e também (você já deve ter adivinhado) através do Partido Comunista. Antes de 2014, a independência ucraniana era uma mentira, uma ficção em que o Ocidente estupidamente acreditou. Uma verdadeira liberdade da Ucrânia nunca foi o plano de Moscou. Somente uma falsa independência era cogitada. A mesmíssima coisa vale para a Geórgia, os países bálticos, a Polônia, etc. Enquanto acreditávamos que a União Soviética havia recuado, Moscou mantinha o seu império clandestino por meio de estruturas comunistas no mundo corporativo, na política e na mídia. O fato de alguns desses países conseguirem uma genuína independência tornou-se um problema para Moscou.

Foi o desertor da KGB Anatoliy Golitsyn quem avisou o Ocidente, em 1984, que uma “liberalização controlada” estava chegando à Europa Oriental. Golitsyn escreveu: “A aceitação ocidental de uma nova ‘liberalização’ como genuína vai criar as condições favoráveis para o cumprimento da estratégia comunista contra os Estados Unidos e a Europa Ocidental, até mesmo, talvez, contra o Japão”. [ xii ] Golitsyn explicou que o cisma sino-soviético fez parte de uma manobra estratégica concebida para convencer o Ocidente a investir na China comunista. “Depois de bem-sucedida a estratégia das tesouras [ou seja, a falsa divisão sino-soviética] ... uma reconciliação pode ser esperada”, previu Golitsyn. “É algo contemplado e implícito na política de longo prazo e na estratégia de desinformação concernente ao cisma”. [ xiii ]

Golitsyn previu que, devido ao sucesso dessas e de outras operações de ludíbrio, o bloco comunista iria adquirir novos países no Terceiro Mundo “em um ritmo acelerado”. E foi exatamente isso o que aconteceu na América Latina e na África. “Em algum dado momento”, observou Golitsyn, “os estrategistas comunistas poderão se persuadir que o equilíbrio da balança está irresistivelmente a seu favor. Nesse caso, deverão decidir por uma 'reconciliação' sino-soviética. A estratégia das tesouras, então, seria substituída pela estratégia do ´punho cerrado'. Nesse ponto, a mudança no equilíbrio político e militar será evidente para que todos a vejam.” [ xiv ]

A verdade está diante de nós. A Guerra Fria nunca terminou. E agora nos vemos numa situação em que temos líderes comprometidos, um sistema de contra-espionagem fracassado, universidades sob controle marxista, e quase todo mundo — direita e esquerda — engolindo narrativas auto-neutralizantes que estão levando os Estados Unidos à sua própria destruição. Enquanto nossos líderes permanecerem desinformados sobre o comunismo, continuaremos a perder território. Enquanto as pessoas caírem nas narrativas pró-russas e nossos empresários insistirem em manter suas parcerias com a China, vamos continuar perdendo. Isso vai continuar a acontecer até que um número suficiente de pessoas entenda tudo o que foi dito acima. E nesse momento estamos muito longe de acordar.

Tradução de Diogo Fontana

Jeffrey Nyquist é analista político e pesquisador independente, especialista em estratégias de subversão comunista e armas de destruição em massa. Já publicou milhares de artigos em importantes sites ao longo das últimas duas décadas. Mantém o blog pessoal www.jrnyquist.blog. É autor dos livros Origins of the Fourth World War, O Tolo e Seu Inimigo e As Mentiras em Que Acreditamos: China, Rússia e a revolução comunista nos EUA.

Este artigo é um trecho de um ensaio publicado no blog do autor. O texto completo (em inglês) pode ser acessado aqui: https://jrnyquist.blog/2023/03/11/the-triumph-of-misdirection/.



Referências:

[i] V.I. Lenin, ‘Left-Wing’ Communism: An Infantile Disorder, (Resistance Marxist Library), https://socialist-alliance.org/sites/default/files/left-wing_communism.pdf

[ii] Natalie Grant, Disinformation: Soviet Political Warfare 1917-1992 (Washington: Leopolis Press, 2020), p. 373.

[iii] https://www.plenglish.com/news/2023/02/15/cuba-thanks-russia-for-wheat-donation/

[iv] https://havanatimes.org/news/cuba-thanks-russia-for-19526-tons-of-wheat/

[v] https://www.cnn.com/2022/11/02/politics/north-korea-russia-ammunition/index.html 

[vi] https://southeastasiaglobe.com/vietnam-and-the-russian-ties-that-bind-them/

[vii] https://www.cbsnews.com/news/nicaragua-gives-permission-for-russian-troops-to-enter-country/

[viii] https://www.cbsnews.com/news/nicaragua-gives-permission-for-russian-troops-to-enter-country/

[ix] https://www.sahistory.org.za/article/mandela-and-south-african-communist-party  https://www.youtube.com/watch?v=cOrjjo3DPbE.

[x] https://www.newyorker.com/news/daily-comment/russia-and-china-unveil-a-pact-against-america-and-the-west

[xi] https://www.newsweek.com/what-putin-has-said-about-russia-taking-back-alaska-1723021

[xii] Anatoliy Golitsyn, New Lies for Old (New York: Dodd, Mead & Company, 1984), p. 340.

[xiii] Ibid, p. 345.

[xiv] Ibid, pp. 345-346.

 


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