CRÔNICA

A última tentação de Marielle

Paulo Briguet · 9 de Janeiro de 2020 às 21:09 ·

O que se passou um pouco antes do assassinato da vereadora

Marielle retocou a maquiagem no espelho do retrovisor. Virou-se para o motorista e disse:

— Anderson, me diga uma coisa. Quero que você fale como homem.

— Tudo bem, vereadora. O que você mandar.

— Eu estou bonita, Anderson? Quer dizer... Eu estou desejável?

— Hum... Está linda, muito linda.

— Anderson, eu confio em você. Ninguém — eu quero dizer NINGUÉM — pode saber que eu estou vindo aqui. Você sabe, o meu projeto político. Ninguém entenderia, Anderson. Mas o que eu posso fazer, se o meu desejo é mais forte que tudo?

— Vereadora, você não precisa se justificar.

— Anderson, pare de me chamar de vereadora! Você já foi proibido de usar “senhora”, agora estou dizendo para você parar de usar “vereadora”. Troço artificial, sabe? Cria uma distância entre nós. Eu te considero um amigo, viu?

— Tá bom, Marielle. Já que você está pedindo, eu vou ser bem sincero. Tudo bem que você tenha atração por homens. Isso é norm... Quer dizer, isso é aceitável. Mas... sargento da Polícia Militar! E fã do Bolsonaro? Aí já é demais, Marielle... Se alguém descobrir isso, você está lascada. Imagine se o pessoal do Marcinho fica sabendo? Você morre, Marielle. Morre!

— Mas o que é que eu posso fazer, Anderson? Eu estou amando, Anderson. Amando! Toda forma de amor...

— Não vem com essa história de “toda forma de amor”, Marielle! Amor com PM? Amor com miliciano? Sexo com o inimigo? Desculpe, mas acho que as pessoas não vão aceitar isso.

— Anderson, você não entende. É uma questão de química, de pele. Adoro homem peludo, tatuado, viril...

— Olha, Marielle. Você sabe que eu nunca vou te trair. Mas ouvi dizer que o pessoal do Marcinho já está de olho em você. Eles estão desconfiados de alguma coisa...

— Ah, deixa disso, Anderson. O pessoal do Marcinho precisa de mim na Câmara. Sem mim, eles perdem influência, perdem negócios.

Marielle se levanta, sai do carro, ajeita o vestido e dá alguns passos vacilantes — não está acostumada a usar salto. De repente, volta até o carro e diz pelo retrovisor:

— Anderson, não esquece de me chamar em uma hora, hein? Hoje eu tenho debate na Casa das Pretas.

— Mas eu não quero incomodar, Marielle.

— Não tem problema. Eu pus o celular no vibra.

(......................................................................................)

Exatamente 76 minutos depois — Anderson ligou no horário combinado, mas os beijos de despedida consumiram algum tempo —, Marielle entrou no carro. No banco de trás, enquanto o motorista fechava os olhos, ela tirou o vestido, tirou o salto alto e colocou uma roupa mais confortável.

— Toca pra Casa das Pretas.

Na esquina, havia um Cobalt parado, que seguiu o carro de Marielle.

Era a turma do Marcinho.

Paulo Briguet é cronista e editor-chefe do BSM.

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