EXCLUSIVO

A Globo fatura com a peste

Paulo Briguet · 7 de Abril de 2020 às 20:57 ·

Campanha da Rede Globo dirigida ao mercado publicitário celebra os picos de audiência durante a epidemia de coronavírus

Quando os historiadores do futuro buscarem entender os efeitos do coronavírus sobre o nosso tempo, creio que não cometerão exagero algum ao chamá-lo de vírus da inversão. Como se sabe, os vírus são agentes infecciosos que invadem as células e se reproduzem parasitando as estruturas de organismos alheios; em outras palavras, o vírus subverte a normalidade dos outros seres. E não é exatamente isso que o vírus chinês está fazendo com todos nós, infectados ou não? Independentemente do seu grau de letalidade, o coronavírus inverteu o funcionamento da vida normal em todos os lugares.

O vírus da inversão é isso que faz governos prenderem cidadãos honestos e libertarem criminosos; que faz a polícia perseguir vendedores de banana e praticantes de jogging; que faz a mídia exaltar a ciência (se ela traz o medo) e censurar o remédio (se ele traz a cura); que faz a militância procurar desesperadamente, em meio aos mortos, aquele que tenha sido um modelo de saúde e vitalidade — alguém assim como a Marielle do respirador, o Che Guevara da cloroquina, o Marighella da UTI.

É evidente que um país inteiro nessas condições — trancado em casa e com os boletos para pagar — esteja mergulhado em tristeza e depressão. Mas nem só de melancolia vive o Brasil. Há setores da sociedade que estão satisfeitos, e até mesmo esfuziantes, com os efeitos do coronavírus sobre a vida da população. A Rede Globo é um exemplo.

Quem ligou a televisão na noite do último domingo para ver o Fantástico, acabou assistindo a um filme de terror. Nos anos 70, o subtítulo do Fantástico era “O Show da Vida”; tornou-se exatamente o oposto. Mortes, velórios, lágrimas, pêsames, choro e ranger de dentes. As covas do Covas. As estatísticas mais pessimistas. A certeza de que tudo vai piorar. E o bordão, insistentemente repetido: FIQUE EM CASA.

Mas eis que, dias antes do Show da Morte, chegara às minhas mãos um caderno de 48 páginas, coloridas e bem diagramadas, recheadas de números e informações otimistas: o exato oposto dos programas jornalísticos da emissora. Trata-se de um material recebido por profissionais do ramo publicitário em São Paulo e no Rio de Janeiro. O caderno se intitula “A JORNADA DO CONSUMO DE CONTEÚDO DO BRASILEIRO”.

 

 

Esse lindo material — do qual você, Leitor Sem Medo, pode ver alguns trechos reproduzidos ao longo desta matéria — não fala do coronavírus em tom de alarmismo ou preocupação. Trata-se, pelo contrário, de orgulho, entusiasmo, talvez até alegria. Não são números de mortos, nem de infectados, nem de sistemas de saúde em colapso. São números de telespectadores, de consumidores, de gente de todas as idades — com os olhos postos na telinha.

 

Diante do mercado publicitário, a Globo se gaba dos seus picos de audiência enquanto os picos da epidemia se aproximam. Com a chegada oficial do vírus chinês ao Brasil — diz a emissora —, 62% dos brasileiros se mostraram muito preocupados com a pandemia e 66% deixaram de ir a shoppings, parques e outros lugares públicos, trocando-os — por livre e espontânea vontade, como se sabe — pela poltrona da sala.

Desde o dia 16 de março, com a recomendação de ficar em casa, as curvas de audiência precederam as da doença, e dificilmente o vírus conseguirá um desempenho tão bom. A busca por informações se acelerou, com 82% das pessoas procurando se informar sobre o vírus uma vez ao dia, 88% manifestando confiança na TV aberta e 86% confiando em portais e sites para saber as últimas da epidemia.

“O isolamento faz o consumo de mídia aumentar”, informa a Globo. O número de jovens e crianças consumindo conteúdo na TV cresce dia a dia. Com as mudanças na grade de programação, a audiência do jornalismo global subiu 17%. Ao meio-dia, dobrou o número de pessoas que ligam a TV. O horário nobre mudou e ficou mais nobre ainda: o fluxo de pessoas que liga o aparelho no começo do horário nobre cresceu 120%! E até a hora da Sessão Coruja se prolongou: as pessoas dormem mais tarde e acordam mais cedo, usando esse tempo extra para um maior consumo dos programas televisionados. A audiência está acima da média em todas as grandes praças, especialmente São Paulo e Rio.

 

 

No portal G1 — apresentado como “um ambiente de credibilidade, sem fake news” —, os números são igualmente impressionantes. Só aumentos: 129% nas page views, 22% no tempo gasto por visita, 108% na média de sessões por dia, 24% na média de videonews por dia, 84% na média de usuários por dia; 29% na média de consumidores de vídeo por dia.

A TV fechada se abriu. Resultado: a Globonews teve um crescimento de 96% na audiência, o público jovem (de 4 a 17 anos) engrossou o Ibope, as classes AB e C1 se ligaram nos canais da Globo. E o BBB, bem no dia 16 de março, deu um show à parte, conscientizando o público a obedecer o Grande Irmão Estatal e ficar em casa, entre quatro paredões.

Tive a paciência de ler as 48 páginas do material distribuído aos publicitários paulistanos e cariocas. E não encontrei uma só palavra sobre as dificuldades, as angústias, os sofrimentos do povo brasileiro nestes dias de quarentena. Nenhuma palavra sobre a catástrofe econômica que nos espreita, sobre os empregos perdidos, sobre os trabalhos interrompidos, sobre os projetos cortados, sobre o medo, a solidão, a insegurança, as dúvidas e as revoltas que habitam o coração de todos nós desde o começo deste pesadelo. Nenhuma palavra sobre os aproveitadores políticos da crise e sobre as suas maiores vítimas: os cidadãos comuns.

Durante a quarentena, reli “A Peste”, do grande Albert Camus. O romance tem vários personagens inesquecíveis, entre eles Cottard, o representante de vinhos e licores. Antes da epidemia de peste bubônica na cidade de Oran, Cottard estava deprimido; os negócios iam de mal a pior (como a Globo nos últimos anos). Com o surgimento da doença, no entanto, Cottard se transforma: as vendas de bebida melhoram espetacularmente, ele fatura rios de dinheiro. Não combate a peste. Não se comove com o sofrimento das vítimas. Não tem compaixão; apenas enxerga a oportunidade.

Quando a peste acaba, Cottard revela quem realmente é. Mais uma vez, confirma-se o teorema de Hofmannsthal: “Nada acontece na realidade sem ter acontecido primeiro na literatura”.

 


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