CRÔNICA

Por que não posso mais cruzar a Higienópolis sem pensar em Paulo Briguet

Luís Batistela · 30 de Abril de 2024 às 15:35 ·

O nosso cronista acabou de ser premiado pela Casa Brasileira de Livros num concurso nacional, mas fica aqui minha crônica como tributo ao mestre

A Casa Brasileira de Livros promoveu recentemente a 1ª edição do Prêmio Prata da Casa, um concurso literário nacional para crônicas, poemas e contos avulsos, e logo em sua estreia, na categoria de crônicas, o evento teve como vencedor o escritor e editor-chefe do BSM, Paulo Briguet, com o texto “A leitora espera a crônica”.

Ainda em fevereiro, quando eu vi a publicação nas redes sociais da Casa, prontamente notifiquei o escritor para o concurso:

­— Você tem que concorrer, Paulo. Envie suas crônicas lá.

Empolgado, ele me mandou quatro possíveis textos que poderiam ser submetidos ao prêmio: “Cidade, vida”, “Meu irmão, o Perdão” e “A leitora espera a crônica”, além do conto “Ainda que eu ande no vale das sombras”.

Sua estética objetiva, coesa e sutilmente ácida o coloca entre os meus autores prediletos, ao lado de Golding, Kundera, Miller, Kafka e Nelson Rodrigues.

Paulo é capaz de transformar as ordinariedades de Londrina, seus bairros, igrejas, prédios, casas, bares, ruas, vielas, em elementos completamente míticos.

Não sou mais capaz de cruzar a Higienópolis sem pensar que o fantasma do canteiro central da avenida possa estar ao meu lado, fitando-me com os seus olhos pútridos; banhando-me com o seu hálito cadavérico. Sua presença me faz enrubescer e, então, eu fujo! Atravesso apressadamente a Higienópolis em direção ao Centro, passo pelo Iate Clube, desvio da curva da Rua Riachuelo, viro na Gomes Carneiro e chego à Área de Lazer Luigi Borghesi.

Trêmulo e exausto, jogo-me de bruços no Anfiteatro do Zerão. Surge então uma belíssima moça, de 21 anos, idade em que as células começam a degenerar, exalando o odor do uísque falsificado e o cansaço das noitadas universitárias.

Ela, chegando ao meu lado, ao ponto da minha cabeça ficar na altura de seus joelhos, se apresenta como Miss Zerão. Digo que me chamo Luís. Ela pergunta o motivo de minha fatiga. Digo que estava fugindo de um tal fantasma da Higienópolis. Ela pensa um palavrão, mas não xinga: Miss Zerão não gosta de palavrão. Disse-me que a mãe e a irmã estão passando um tempo em Los Angeles. O pai acha que está numa fazenda, mas não se recorda onde...

Disse à Miss Zerão que deveríamos procurar um sacerdote, eu para expulsar a vexação fantasmagórica, ela para se confessar sobre as bebedeiras, o sexo e as drogas. Juntos, atravessamos a Rua Professor Júlio Moreira, subimos a Borba Gato, viramos na Rua Olinda, seguimos pela Paes Leme e chegamos à Avenida Rio de Janeiro, onde repousa o Coração de Mãe, o Santuário de Schoenstatt. Após sermos atendidos pelo padre, ele nos recomendou um livro, um pequeno milagre, mas não um milagre prodigioso, como a ressurreição de Lázaro em Betânia ou a dança do sol em Fátima. O livro é um desses milagres que acontecem todos os dias, quando o ordinário acaba por revelar algo extraordinário.

Assim como seus textos, Paulo, a vida revela-se um milagre ordinário, quando pessoas e cenários transcendem a realidade visível, tornando-se, ao mesmo tempo, fantásticos e corriqueiros; fictícios e reais. Paulo não é apenas um escritor de sete leitores, mas um taumaturgo comum, nascido em 1970, filho de Paulo Lourenço, identificador de sósias e imitador de personalidades. Capaz de construir um diálogo cômico e profundo entre Luiz Inácio Lula da Silva, João Milanez, Eduardo Judas Barros e Michel Temer. Editor-chefe do Brasil Sem Medo e mais um Repórter das coisas...

Segue abaixo o texto premiado:

 

A leitora espera a crônica

Sei que, em algum lugar do mundo, alguém espera esta crônica. Deve ser apenas uma leitora que reserva cinco minutos de seu dia para saber o que um cronista decidiu escrever. Na maior parte das vezes, ela se decepciona, mas não desiste. Um dia, talvez, o cronista dirá aquelas palavras que ela está precisando ouvir, que despertariam o segredo mais valioso das profundezas da alma, como a forma desperta o conteúdo, como o dia desperta a noite, como a partitura desperta a música. A leitora não desiste, e o cronista também não.

Certa vez, um grande amigo do cronista ouviu, de um completo desconhecido, a seguinte frase:

— Minha mãe acabou de morrer.

Talvez a leitora queira saber o que o cronista tem a dizer sobre isso, sobre uma clara de manhã de junho em que abrimos a porta e um estranho nos diz, como se fossem as únicas palavras do idioma:

— Minha mãe acabou de morrer.

A leitora que espera a crônica não sabe quem é a mãe nem o filho, a leitora talvez nem saiba quem é o grande amigo do cronista. A leitora espera uma crônica que ela possa entender e reconhecer como a mãe reconhece um filho no caos do bombardeio. A leitora espera uma crônica que desperte o seu instinto materno, e assim o mundo teria menos uma criança órfã, mesmo que em forma de letras e espaços em branco na tela do computador.

A leitora que espera a crônica, desnecessário dizer, espera o impossível. Se é desnecessário dizer, então, por que dizer? Ora, porque a crônica gosta de dizer exatamente o desnecessário, e aí mora a sua impossibilidade. Impossibilidade e inutilidade que ninguém tem paciência para ver — exceto a única leitora da crônica.

A leitora espera uma crônica que tenha algo para lhe dizer sobre a jornada de trabalho que começa; sobre o gerente que não conhece bulhufas do serviço; sobre o mendigo que dorme na mureta da loja de autopeças; sobre o cavalo doente que está apanhando do dono; sobre o cachorro que tem saudade. A leitora espera uma crônica sobre a leitora que espera a crônica.

É para essa leitora que eu escrevo, embora não saiba seu nome, nem sua profissão, nem seu endereço. Embora talvez nunca venha a saber quem ela é. Embora, meu Deus, às vezes me atormente a ideia, bastante lógica, de que ela não existe.

Talvez a leitora espere que eu fale sobre a musiquinha que tocava aos domingos no Fantástico (“Olhe bem / Preste atenção...”). A chatice dos sapatos que engolem as meias é outro assunto que a leitora apreciaria ver na crônica. Espera que eu fale do Tio Patinhas, milhardário de Patópolis. Ou, ainda, que eu lembre as tardes de julho na Alameda Barão de Limeira, quando morávamos no primeiro andar, em cima da lavanderia.

Por isso, por isso tudo, a crônica existe. Existe para ser esperada, para decepcionar, para voltar à carga. Na verdade, ninguém sabe por que a crônica existe, por que continua sendo escrita. Quem sabe, a leitora da crônica tenha desaparecido para sempre, junto com a frase daquele homem desconhecido:

— Minha mãe acabou de morrer.

 


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